quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O roteiro da vida real



O que é exatamente uma ausência? Drummond em um dos meus poemas favoritos disse:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
[...] e essa ausência assimilada
ninguém a rouba mais de mim...” 
Com alguma frequência, assisto meninos crescerem entre ausências. Crianças que na idade adulta, ainda estarão na infância reclamando o amor que lhes faltou quando eram pequenas. E mantem-se assim, até o momento em que aprendem a encontrar a satisfação, o desfastio e a alegria nelas e por elas mesmas.

Dia desses, no cinema, me deparei com o cineasta russo Andrey Zvyagintsev, em Loveless, um dos fortes candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Longa que expõe a aspereza, a dor e os vazios da falta de amor. No início da trama, um menino brinca com uma fita de isolamento que traduz seu exílio. Entre ele e seus pais, grandes abismos e nenhum espaço para o afeto. O amor e a atenção estão direcionados para outras pessoas, outras necessidades. E dentro deste cenário gélido, desértico, visitei a menina que fui, lembrei-me das meninas que fiz nascer e de tantos outros que considero meus.

Cena do filme Loveless

Crianças e suas mágoas, suas dores e hematomas. Já dizia o poeta que “nascer é abrir-se em feridas.” Machucados que se fazem à mercê do desejo dos pais e, principalmente, os que contém a sua autoria. Sim, porque eu, enquanto mãe, entre tantos não saberes, tenho certeza que todas as minhas faltas provocaram outras tantas em minhas filhas.


Me culpar e chorar os buracos, nada resolve e nem auxilia consolos. A procura por culpados diante do adoecimento de uma criança é inoportuna, isso porque, pais e filhos são dinamicamente participantes e compartilham de ressonâncias do que chamamos vida, em um elo de infortúnios que se repete por gerações. Para ferir com instrumento cortante essa conexão, tudo o que me esforço em fazer é assumir minhas responsabilidades incorporadas a essa linha geracional, na consciência do meu melhor, na lucidez e remissão das feridas que se abriram na minha infância e na minha capacidade de amor.


Ausência e presença são episódios de qualquer vida humana desde que nascemos. A elaboração da angústia do que nos falta é aprendida nos espaços de aparecimento e desaparecimento de pessoas e haveres. O bebê afasta-se do útero e se projeta momentaneamente num espaço vazio, até o desejado encontro com a mãe e o acolhimento em seu amor. É nesse tempo-espaço de ausências que começamos a elaborar a faculdade de estar sozinho. Os bebês adoram quando os pais brincam de fazer coisas desaparecerem. Jogo que divertia muito a mim e as minhas filhas. É o início de um envolvimento com a nossa solitude, que mais tarde se transforma numa experiência de saber ficar só, consigo mesmo.


Ordinariamente os pais têm dificuldade de sustentar as ausências dos seus filhos. Ausências não podem ser confundidas com abandono, como no caso do filme russo Loveless. Estas ocorrem quando os pais sustentam a possibilidade de seus filhos descobrirem outros amores e experimentarem a vida para além deles. A criança que é autorizada pelos seus pais, é tomada na sua competência de provar da vida para além do visível. É a capacidade de encontro com os nossos vazios, medos e dores, e sabermos que ainda há vida. Puti!!!



Precisamos encontrar nossas ausências rastreando o estar “em mim”. É esse o bálsamo capaz de cicatrizar minhas chagas pela vida afora. É essa a fragrância para o corpo e para a alma das minhas filhas, o oásis dos meus meninos e para todas as crianças escondidas em nós.

Cristina Moraes, espectadora protagonista.

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