Ella repousa na cama, dedos cruzados sobre o ventre. Seus pensamentos, inquietos, sussurram como vozes de um palco secreto.
Às 14h, ele entra no quarto. O olhar de Juan encontra-a em pleno devaneio, e sua pergunta rasga o ar:
— Você está apaixonada por outro homem?
O silêncio já trazia a resposta. Essas coisas acontecem nas frestas do matrimônio, onde os corpos se encontram, mas as mentes viajam.
Mais de uma década juntos e Juan acreditava na autenticidade de sua vida a dois. Mas Ella habitava mundos invisíveis, suspirava desejos que não cabiam em sua rotina. Seu corpo permanecia ali, fiel; sua mente, porém, era território livre, onde outras possibilidades floresciam. Onde andavam os pensamentos de Ella? E que frutos poderiam nascer deles?
Ella é uma mulher contemporânea. Poderia ser eu. Poderia ser você. Essas histórias atravessam até as instituições mais sólidas.
Quase dois séculos antes, em 1830, John Stuart Mill conheceu Harriet Taylor. Ela era casada, mas os dois se apaixonaram perdidamente. Viveram anos de espera até poderem se unir. Harriet transformou a filosofia de Mill, deu-lhe linguagem e horizonte, inscreveu-se no coração de sua obra. Amor interdito, mas fundador.
O amor é linguagem, feita de códigos e silêncios. É força que transborda biografias, ficções e fatos. Há amores que não tocam a carne, mas incendiam o pensamento. Há desejos que nunca se cumprem e, ainda assim, reinventam a vida.
Pergunto-me: pode o inconsciente, regido pelo princípio do prazer, se curvar aos interditos da civilização? E, se sim, a que custo? Talvez sejamos, todos nós, “neuróticos adestrados”, contidos no ato, mas acesos no desejo.
Porque o desejo é chama. E só arde pelo que não temos. É ausência que move os corpos. É promessa de um encontro sempre adiado.
Lembro-me de Sócrates em O Banquete: “Confesso não entender de nada mais, senão de amor.” Também eu sinto que sem amor, a humanidade não suportaria um só dia.
Entre minhas próprias limitações, concluo: diante dos freios sociais que nos contêm, o que talvez prevaleça não seja o amor ao amor, mas o amor à verdade (talvez à própria verdade). Mesmo quando ela é fragmentada, inconclusa, tempestuosa. Pois desejos passionais são como águas: correntes que podem ser riachos tranquilos ou tsunamis devastadores.




