quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Vários Amores, Uma Só Vida - Parte II


Toda demanda é uma demanda de amor
Jacques Lacan

Ella repousa na cama, dedos cruzados sobre o ventre. Seus pensamentos, inquietos, sussurram como vozes de um palco secreto.

Às 14h, ele entra no quarto. O olhar de Juan encontra-a em pleno devaneio, e sua pergunta rasga o ar:
Você está apaixonada por outro homem?

O silêncio já trazia a resposta. Essas coisas acontecem nas frestas do matrimônio, onde os corpos se encontram, mas as mentes viajam.

Mais de uma década juntos e Juan acreditava na autenticidade de sua vida a dois. Mas Ella habitava mundos invisíveis, suspirava desejos que não cabiam em sua rotina. Seu corpo permanecia ali, fiel; sua mente, porém, era território livre, onde outras possibilidades floresciam. Onde andavam os pensamentos de Ella? E que frutos poderiam nascer deles?











Ella é uma mulher contemporânea. Poderia ser eu. Poderia ser você. Essas histórias atravessam até as instituições mais sólidas.

Quase dois séculos antes, em 1830, John Stuart Mill conheceu Harriet Taylor. Ela era casada, mas os dois se apaixonaram perdidamente. Viveram anos de espera até poderem se unir. Harriet transformou a filosofia de Mill, deu-lhe linguagem e horizonte, inscreveu-se no coração de sua obra. Amor interdito, mas fundador.

O amor é linguagem, feita de códigos e silêncios. É força que transborda biografias, ficções e fatos. Há amores que não tocam a carne, mas incendiam o pensamento. Há desejos que nunca se cumprem e, ainda assim, reinventam a vida.

Pergunto-me: pode o inconsciente, regido pelo princípio do prazer, se curvar aos interditos da civilização? E, se sim, a que custo? Talvez sejamos, todos nós, “neuróticos adestrados”, contidos no ato, mas acesos no desejo.

Porque o desejo é chama. E só arde pelo que não temos. É ausência que move os corpos. É promessa de um encontro sempre adiado.

Lembro-me de Sócrates em O Banquete: “Confesso não entender de nada mais, senão de amor.” Também eu sinto que sem amor, a humanidade não suportaria um só dia.

Entre minhas próprias limitações, concluo: diante dos freios sociais que nos contêm, o que talvez prevaleça não seja o amor ao amor, mas o amor à verdade (talvez à própria verdade). Mesmo quando ela é fragmentada, inconclusa, tempestuosa. Pois desejos passionais são como águas: correntes que podem ser riachos tranquilos ou tsunamis devastadores.


Carolina Parrode, desejante e desejada.


domingo, 5 de agosto de 2018

Res Publica, Res Privata

"O que é natural, não busquemos nos seres depravados, mas naqueles que se comportam de acordo com a natureza"
Aristóteles, Política.



É possível o ser humano alcançar o conhecimento genuíno? Apesar de saber que não, esse furor nunca me abandona. Deixa minha mente inquieta, meu coração angustiado e minha alma sedenta.

Uma das primeiras inquietudes como aspirante a jurista, foi quando das primeiras aulas de Direito Romano que assisti na Universidade, ainda no século XX. 
Depois de um tempo, me apaixonei por Direito Público e aí... questões e mais questões arrumei para minha vida jurídico-epistemológica! A sede de saber transformou-se em 'furor educandi' e, desde então, dou aulas de Direito Constitucional para crianças entre 7 e 10 anos de idade. 
O fato é que eu estava às voltas com Rousseau (pessoa que eu amo e odeio ao mesmo tempo, conto o motivo depois)  e des-cobri que a culpa da desigualdade econômica, social e política tem duas matrizes:
A primeira é a problemática da instituição da propriedade privada. A segunda é a própria civilização, malignamente ambígua.
Olhem só que trecho forte (porque Rousseau é o rei do "faça o que eu digo, não faça o que eu faço"):
"O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer 'isto é meu' e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: 'não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém " (p. 80)

Pois é... minha vida tem temas e trilha sonora. E esses  antagonismos (que para mim são complementares) como "coletivo/individual", "público/privado", "de todos/de ninguém" são temas da minha vida, dentre outros, e meus neurônios se desgastam em torno deles!

Vejamos outro cenário: 
Passeando pelo Rio de Janeiro vi muros/portões pichados "Não fui eu"... desabafo e pichação em letra bonita digna da melhor professora alfabetizadora. Instantaneamente lembrei-me do artigo de João Moreira Salles para a Piauí de abril "Anotações sobre uma pichação -  Inocência, culpa e responsabilidade nas ruas do Rio de Janeiro". Na época li o artigo para meus alunos e conversamos muito sobre responsabilidade coletiva, infortúnio alheio, alteridade e empatia - delícia de aula.




Fato é que o articulista dizia assim no introito: "Não sendo enunciada por ninguém em particular, a frase pertence a qualquer um. A sensação de que "Não fui eu" fala de nós é uma confirmação de que, dado o alheamento geral, o melhor é jogar a toalha e cuidar da própria vida! (...) se cheguei aqui apesar dos outros, o que diz respeito ao mundo não me concerne. Natural, portanto, que eu me exima de toda responsabilidade coletiva. O infortúnio alheio não me pesa. Não fui eu."

Enfim... o que tem a ver um filósofo francês, a epígrafe do Aristóteles, o artigo de João Moreira Salles com a pichação nas ruas da metrópole ?! 
O que tem a ver a pichação com  reflexões sobre res pública e res privata?!
Sei não! Eu estava aqui só divagando sobre duas andanças vividas no mesmo dia: o caos da metrópole e pensamentos iluministas.

Carolina Parrode, pensante.