segunda-feira, 27 de outubro de 2025

 Manual de Submersão e Retorno


Aprendi que, aconteça o que acontecer, a vida continua.
Só não disseram que, às vezes, continuar é o verbo mais cruel.




Durante anos, chamei de amor o que era descida.
Lenta. Disciplinada.
Chamavam o poço de lar.
Tinha cortinas limpas, cheiro de café e um silêncio educado - o tipo de silêncio que treina o corpo para não existir demais.
Aprendi a respirar sem barulho.
Perséfone, pontuando presença no turno doméstico do inferno.

Tentei reagir.
Li manuais, assisti vídeos, fiz listas.
“Superação em 28 passos.” “Autoestima em três semanas.”
Cada promessa roubava uma sílaba de mim.
Descobri que a dor só é aceita quando vem com metas.
Transformaram o sofrimento em tarefa.
Eu obedecia: sorria, produzia, relatava.
A psicologia positiva me pedia eficiência emocional - e eu entregava relatórios de felicidade.

Foi então que percebi: o patriarcado não é um homem.
É uma língua.
Mansa, burocrática, cheia de eufemismos.
“Fique calma.” “Você é forte.” “Respire.”
Ordens disfarçadas de afeto.
Eu as cumpria como quem assina ponto.

Dentro de mim, duas mulheres:
a lúcida e a sobrevivente.
Uma via o sistema, outra o justificava.
Ambas adoeciam: uma de lucidez, outra de esperança.

O espelho virou tribunal.
Devolvia uma mulher eficiente, mas sem cor.
As rugas eram planilhas.
O corpo, um arquivo corrompido.
Ainda assim, eu sorria.
Era o que se esperava: que o sofrimento não interrompesse o desempenho.

Até que um dia, cansada, parei.
“Superar”, percebi, era a palavra que me mantinha presa.
Ninguém supera o inferno; apenas o nomeia.
Permiti o silêncio.
Deixei a raiva respirar.
Da fusão entre lucidez e loucura nasceu outra língua: feita de pausas e de fogo.

Nunca duvidem da capacidade de um homem - e do mundo que o apoia - de reduzir uma mulher até que ela acredite ser pequena.
Mas também não duvidem da mulher que aprende a olhar de volta.

Quando olhei, petrifiquei o sistema.

Aprendi que, aconteça o que acontecer, a vida continua.
Mas não melhora.
Ela se vinga,
quando uma mulher fala.
  
Carolina Parrode.