A
Substância — filme dirigido pela roteirista e diretora francesa Coralie Fargeat
— é uma obra de horror visceral e perturbador, marcada por uma estética
violenta que despertou tanto controvérsias quanto elogios.
Evoco aqui minhas próprias experiências e as reflexões de Malvine Zalcberg, Simone de Beauvoir e Elizabeth Badinter sobre a construção da feminilidade e o mito do amor materno. A partir dessas evocações, o filme se revela para mim como uma alegoria complexa da relação entre mãe e filha, uma dança em que o amor e a destruição se entrelaçam.
No
filme, vemos um corpo que se origina de outro corpo, mas que, paradoxalmente,
possui o poder de aniquilar sua matriz. Tal como a maternidade, que, uma vez
decidida, é irreversível. A relação entre mãe e filha implica numa troca íntima
e permanente, na qual ambas deixam marcas profundas e indeléveis uma na outra.
A
filha, que nasce dependente e em processo de formação, reflete-se na mãe e, em
última instância, redefine-a, questionando suas próprias sombras. Esse
espelhamento, que me lembra o “estádio do espelho” de Lacan, processo de
constituição de si a partir de um outro, revela facetas escondidas da mulher
que só emergem no exercício da maternidade.
Em
A Substância, Sue e Elisabeth se entrelaçam. Quando Elisabeth olha para Sue, vê
uma criação esplendorosa, sua obra-prima. Contudo, no confronto com a criatura,
Sparkle também se vê como um ser fragmentado, falho, uma projeção distorcida da imagem que estava presente em seu imaginário.
Nessa
dinâmica a maternidade é um espelho, no qual a mulher se depara não apenas com
a esperança de concretização de seus desejos através de sua filha, mas com a
monstruosidade que pode emergir dessas expectativas.
Sue,
ao injetar-se os fluidos retirados da medula espinhal da matriz a fim de continuar experienciando a vida, simboliza a
transmissão do legado materno — um processo de formação que se dá por meio do
que a mãe transfere de si mesma. A transgeracionalidade. Porém, há algo de paradoxal nesse legado, uma substância corrompida que,
ao mesmo tempo que permite à filha prolongar sua experiência de ser mulher,
carrega em si as neuroses e os conflitos da matriz. É legado de vida e
angústia. É uma substância que alimenta e contamina, e que nos leva a refletir
sobre o que, de fato, a mãe doa de si para que a filha se constitua — e, no mesmo processo, do que ela pode prescindir em busca de refinamento e ressignificações, filtrando a herança recebida para que não seja apenas repetição, mas possibilidade de recriação.
Esse
filme, portanto, pode ser analisado por outro viés além do confronto estético
que tanto já ouvimos. Trata-se também de
um enfrentamento existencial e simbólico, no qual mãe e filha se tornam
alteridades uma para a outra. A 'adolescenta', como
podemos chamar, é um ser nascido das entranhas maternas, que ao mesmo tempo
fascina e fere, revelando-se como um estranho familiar que desafia e questiona
a mãe em sua essência.
Assim,
A Substância foi para mim, em meio a um momento de conflito com minha amada filhota
adolescenta, uma inquietante, horrorosa e
bem humorada exploração dos limites da maternidade, uma meditação sobre
o que acontece quando a mãe se vê dilacerada pela própria criação. É um filme
que transcende o horror ao expor as complexidades do vínculo entre mãe e filha,
subvertendo o mito do amor materno como algo puro e imaculado, e, em vez disso,
revelando-o como um processo tão intenso quanto destrutivo, tão essencial quanto
ameaçador.
Carolina, mãe de adolescenta.