terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Oriente-se

"O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro."



Sempre fantasiamos em partir, caminhar para longe, sermos livres para estarmos do lado oposto, contrário, lá onde o sol se põe. E depois dos desejos e sonhos, fizemos acontecer...

 

Parto-parte-ir, partimos, nos despedaçamos e nascemos no oriente. Saímos das nossas conjunturas, já muito conhecidas, para inícios de outras realidades, muito diferentes, insólitas...


Primeiros dias, no corpo dividido, o sono vinha nos mais inapropriados momentos, no meio de um almoço inusitado ou durante uma conversa cheia de novidades. Mas a ideia era ver, ouvir e sentir, de olhos e corações inteiros e abertos.




Nosso íntimo foi se expandindo e em muitos momentos, a vista quase não deu conta da amplidão. Choramos... Era a emoção na forma como cada uma das viajantes, em suas particularidades, foi se entrelaçando com o lugar, com as pessoas, em dias de muito crescimento e aprendizagem.


Ao norte da cidade de Ubud, no coração da ilha de Bali, na Indonésia, abraçamos a Green School. Dentro de uma floresta, onde corre o rio Ayung, a escola reconhece, certifica e compartilha uma cultura de sustentabilidade. Crianças felizes vivem tudo que acreditamos como bom, bonito e verdadeiro. Estar lá nos assegurou agir com mais certeza nos desafios que enfrentamos na Escola Espaço Criativo.


Chamam Bali de “ilha dos deuses”, entendemos a premissa quando nos habituamos a sentir sua energia harmônica e saudável. Uma espiritualidade que justifica a beleza das cerimônias e oferendas. Fomos abençoadas nos passeios pelos arrozais, nos templos ou andando pelo mercado. A meditação, a conexão com as pessoas, com o lugar, nos alargou em amor e sensibilidade, num desejo de crescimento humano.






Depois veio a Tailândia e a variedade dos seus temperos de vida. Uma terra livre... Nas ruas enlouquecidas de Bangkok, as majestosas praias edênicas do litoral, outras e novas descobertas. A cultura Budista em meio à tradição e modernidade, a fé dourada e vibrante dos tailandeses, a beleza natural e exuberante das ilhas, se fizeram presentes em alinhavos na pele. Fomos marcadas no corpo e na alma. No traço do desenho, a representação da nossa busca de edificação do espírito.





 





O Cambodja, encheu de significado a palavra bonito. A beleza se personificou nos cambojanos. Cada pessoa é um templo, no olhar cheio de afeto, no sorriso honesto e brando, na forma como impostam as mãos e encurvam levemente o corpo em cumprimentos cheios de distinção, bondade e delicadeza. Nosso coração, muitas vezes, doeu diante dessa sé... Não entendíamos como não sucumbiram a sua história de guerras, mutilação, pobreza e morte. Nossa vontade era de um grande abraço de acolhimento, de um conforto, de fazê-los felizes.
Ficou-nos a certeza de que são seres maiores e mais fortes do que Angkor Wat e suas árvores de raízes imensas.
Mais poderosos do que todo o império Khmer. A riqueza está em como mantêm enorme disposição para o amor...


É bem verdade que o caminho percorrido por nós, nos sugeriu uma epifania... nos legou um testamento... e dos mais valiosos!
E, agora, nós sabemos, o que, antes, já sabíamos: as experiências solidificam a aprendizagem, porque a torna real.
Verificação, prova, contraprova, experimentum crucis, apalpamento, reagente, reativo, empirismo, especulação, tiro para o ar, aventura, ensaio, tentame, erro, acerto, tentativa...
Tudo o que se pode oferecer de melhor ao ser humano é a experiência! A vivência, essa sim é preciosa! Essa sim é salutar e enriquece a humanidade que há em nós! Sim.. porque acreditamos que o ser não nasce humano... humaniza-se com o tempo. Nada é tão vivo e efetivo (afetivo) quanto experienciar...
A experiência envolve os nossos sentidos, é genuinamente humana. Nos enreda nas teias da sociedade, nos torna acessíveis, nos obriga a fazer parte. E isso, porque “ser”, nós já somos... mas “humanos”? A humanização vem através da ampliação de quem somos, da descoberta de nós mesmos, na constituição paulatina de nossa subjetividade, aos poucos, na toada de uma vida.


Podemos dizer, sem titubear, que nos sentimos um ‘cadinho’ maiores do que mês passado. Hoje, vários outros seres somam-se a nós. Nada mais será como antes, simplesmente, porque conhecemos a Kadeki, nos deixamos guiar pelo Oka, trocamos ideias com o Ben, tomamos a kambutcha do Jhonny, escutamos o sotaque alemão da Steph, acessamos o sorriso da Gerda, usufruímos da gentileza australiana do Graem, aprendemos sobre comunicação gestual com o Sam, percebemos o sorriso e humildade da moderna Bell, gozamos da generosidade dos nepaleses e fomos atravessadas pela singeleza e sabedoria do Alex. Hoje, conhecemos o cheiro de Ubud e, com ele, um monte de outras coisas. Hoje somos um pouquinho mais ‘gente’ porque nos deixamos penetrar pelo olhar dos músicos cambojanos, pela súplica das crianças que se chegaram a nós, pelas lindas vozes das cantantes tailandesas. Agora sabemos... o peso e singeleza das mãos das balinesas, cambojanas e tailandesas.




Isso é arte... o ato de experimentar o mundo à nossa maneira, e a possibilidade de remeter nosso olhar para o universo individual do outro. O desenrolar dos fatos e o encontro com cada pessoa nos fizeram sentir um suporte, absolutamente divino, que podemos interpretar como um estado de graça de quem se deixa levar pelo fluxo natural da vida.



E em meio a esta aventura sagrada, mergulhamos em nós mesmas, aprofundando nossa auto-referência. Descobrimos que quanto mais nos aprofundávamos em nós, mais perto ficávamos do outro. Essa reflexão nos levou a descobrirmos novas nuances de nós mesmas, nunca antes percebidas, a nos abrirmos mais em generosidade e amor. E isso é assim porque o verdadeiro mergulho em si, a genuína auto-reflexão, não te torna egoísta, individualista, egocêntrico ou ‘ensimesmado’. Ao contrário disso, aguça sua escuta para as necessidades do bem coletivo, do Outro e daquele que está imediatamente diante de você. O olhar para o outro se amplia, se aprofunda. E se enche de amor, gratidão e compreensão.


A união do que somos, com lugares e pessoas tão diferentes, foram os desafios vividos nas terras onde o sol se põe. Se quem somos, depende de onde estamos, quando e o que está acontecendo, se somos seres sociais e históricos, o certo é que devemos nos expandir, alargar nossas possibilidades. Viver diferentes e múltiplos contextos. Essa abertura nos permitiu ir além da nossa condição universal, nos fez crescer em humanidade.



Quando rompemos com o contexto em que vivemos, em partos, partidas ou nos partindo, expandimos nossos horizontes, nossas vivências.


Quando saímos da nossa contextura, quando conseguimos olhar do lado de fora a nossa realidade, entender onde vivemos, podemos julgar, criticar nossas “verdades”, e ganhamos liberdade de escolhe-las. Podemos, assim, criar outras possibilidades...


Ao reconhecermos as nossas prisões, através das prisões do outro, transitando entre elas, fazemos tentativas de liberdade. Conhecendo, se reconhecendo, se refazendo... A viagem nos abriu caminhos, nos abriu para o outro, na disponibilidade para ser e fazer mais.


Isso pode acontecer através de uma viagem, lendo livros ou indo à escola. Esse é o exercício de liberdade a que nos propomos enquanto educadoras. Acreditamos no desenvolvimento humano, acreditamos na vida.
Creditamos e agimos a favor disso, a favor da educação e da liberdade que ela nos possibilita. A biografia dos caminhos pelo por do sol, nos fez pessoas maiores e melhores, mais conscientes da nossa responsabilidade na construção desse viver bonito para todos.
Apesar das dificuldades e resistências, não perdemos o sonho de uma humanidade nova, pois ao assumirmos a missão de educar, também elevamos nossa capacidade de pensar e construir um mundo melhor.



Relatório elaborado pelas viajantes: Cristina Mores, Carolina Parrode e Bárbara Sant'Anna Miguel
Fotografia: Bárbara Sant'Anna Miguel