terça-feira, 2 de junho de 2020

Pandemia, instituições, economia e saúde mental


“Os maus, sem dúvida, entenderam alguma coisa 
que os bons ignoram”
Woody Allen



Alguém já ouviu falar do tal “Sistema de Freios e Contrapesos”?
Também é conhecida como a Teoria da Separação dos Poderes. É o seguinte: um francês, da época da Revolução Francesa, chamado Montesquieu visitou as ideias de Aristóteles, John Locke e alguns outros; juntou com os colegas e redigiu “O Espírito das Leis”. Nesse tratado, ele explica, amplia e sistematiza a divisão dos poderes.
É um tratado de passividade entre os poderes? NÃO!
É um manual sobre como um não pode interferir no outro? NÃO!
É um texto que explica a hierarquia entre os poderes? Também NÃO!
Inclusive, a Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu foi inspirada no pensamento democrata-liberal do Locke, que partia do princípio que os homens nasciam livres e com direitos iguais (‘çei’... hello Brasil, 2020). Ela surgiu na época da formação do Estado Liberal baseado na livre iniciativa e na menor interferência do Estado nas liberdades individuais. Essa tripartição clássica dos poderes se dá até hoje, na maioria dos países, e está consolidada pelo artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e prevista no artigo 2º da Constituição Federal brasileira, onde nós dividimos e especificamos as funções de cada poder.
Resumindo, a ideia principal dessa teoria é evitar a concentração de poder e estabelecer uma espécie de controle mútuo (lembrem que na época das revoluções burguesas o problema era o absolutismo, a tirania de um único soberano – o rei).
Montesquieu acreditava que para afastar governos tiranos, era preciso estabelecer a autonomia e os limites de cada poder. Com isto, cria-se a ideia de que ‘só o poder controla o poder’. 
Então, o Sistema de freios e contrapesos, mostra que cada poder é autônomo e deve exercer determinada função. Porém, este poder deve ser controlado pelos outros poderes! Assim, um Poder do Estado está apto a conter os abusos do outro de forma que se equilibrem. O contrapeso está no fato de que todos 3 os poderes possuem funções distintas, fazendo, assim, com que não haja uma hierarquia entre eles, tornando-os poderes harmônicos e independentes. 
A ideia é brilhante. Vejam só... quando o Judiciário declara a inconstitucionalidade de uma lei, isso é um freio ao ato Legislativo, que poderia conter uma arbitrariedade. 
Para que o abuso de poder não ocorra, é necessário que "o poder freie o poder".
Desta forma, a separação de poderes seria o sistema mais compatível com o Estado Democrático de Direito porque limita a tirania e abuso, e “garante” a plena liberdade política dos indivíduos e dos direitos das minorias (teoricamente).
É importante ressaltar que Montesquieu não elaborou a teoria pensando nos processos sócio-históricos do Brasil, obviamente. Por aqui, temos uma educação política precária e a desigualdade social é tão gigantesca que chega a impedir o exercício de direitos. Se o indivíduo sequer sabe de seus direitos, como exercê-los? Qual é o livre arbítrio do analfabeto? Qual a prioridade do cidadão que não usufrui da mínima infraestrutura? 
Montesquieu não contou com o fato de que, no Brasil, sua teoria seria trajada por um tecido social estruturalmente racista e violento; classista e desigual. Onde os cidadãos mal teriam condições de refletir no exercício de uma liberdade política viável. Nos planos do filósofo, ele havia traçado uma prevenção eficaz contra o abuso governamental submetendo governantes e governados às regras e aos procedimentos legais, onde ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de prévia determinação legal.
🎬 Corta!
Brasil, pandemia/2020.
Manter-se informado dos acontecimentos sócio-políticos do Brasil requer muita saúde mental e emocional. O brasileiro é um povo que sofre abuso psicológico diariamente, basta acompanhar as notícias.
Ultimamente assistimos, por parte do chefe do Poder Executivo, a proposta para a instauração de um confronto institucional: Executivo X Judiciário. É sara inverno, olaff de carvalho, 01, 02, 03, fetiche de ser amamentado na adultescência, #foraSTF, #dentroAi-05 etc.  Não suportamos mais submergir em significantes como pandemia, curva, mortos, desemprego, fascismo, racismo, machismo, homofobia, direita, esquerda, economia, bolsonarismo, saque, poder, injustiça, expropriação e tantos outros significantes, com suas enxurradas de significados.  
Se já está difícil suportar para os que usufruem de privilégios, imaginem para quem vive à margem e depende de um Estado forte nesse momento para conseguir manter sustento (sustento material e psicológico)?
Nesses dias, obter um tanto de satisfação é um trabalho hercúleo. O brasileiro assiste os órgãos do Poder Executivo e entidades a ele ligadas adotarem posicionamentos de desrespeito... Ações que minimizam a importância do Judiciário diante da nação. O enfraquecimento dessas instituições democráticas lançam a sociedade contra si e criam um clima de antagonismo institucional.
O cenário atual do Brasil mostra ao povo que o Poder Legislativo, Judiciário e governos estaduais são obstáculos constitucionais que precisam ser ‘desempoderados’. O presidente quer garantir uma gestão baseada numa visão própria da Constituição, sem submeter-se às limitações constitucionais do “Sistema de Freios e Contrapesos”. Como encontra reação, dobra a aposta no confronto e instiga seus apoiadores e eleitores. A pergunta que fica é: esse tipo de confronto é produtivo para QUEM e para QUE?! Essa espécie de antagonismo é produtiva para nossa democracia, ou a empobrece e amedronta o cidadão?
A experiência de ser brasileiro, nos últimos dias, tem se resumido a momentos de alegrias individuais, seguidos por longos períodos de desesperança, impotência e tristeza. Um momento político que poderia nos instigar ao otimismo, em verdade nos cega para beleza e empobrece nossa lógica. A noção de justiça nos foi usurpada e o que resta é uma sensação de ridículo diante da nossa indignação ineficaz. Gritar por transparência, probidade, direitos humanos e garantias de direitos parece-nos um ato infantil e descontextualizado. A noção de tempo está pervertida, pois é pautada pelas atualizações das notícias e tempestade de textos e opiniões sobre cada uma das tragédias.
Ser brasileiro é uma angústia.


Carolina Parrode, antifascista.

domingo, 22 de março de 2020

QUAL O SEU PAPEL DIANTE DA CRISE?


“Não podemos acreditar em verdadeira liberdade e democracia enquanto existirem pessoas privadas de direitos e da sua própria liberdade”
Angela Davis


“Liberdade é coisa que se conquista conjuntamente”
Juliana Borges


Em época de pandemia é preciso repensar a função social das instituições de ensino. É preciso atuar no sentido de proporcionar conhecimento e mediar bem-estar entre todas as formas-de-vida que compõem nossa comunidade – entre os membros das famílias -, ato que está muito além das técnicas pedagógicas de ensinar, do oferecimento puro e simples de conteúdos pedagógicos e grade curricular.  Pelo o que temos lido e pesquisado... a quarentena durará mais tempo e o prazo colocado pelas autoridades governamentais será, seguramente, ampliado.
A luta que se impõe à nós, nesse tempo, é a construção de um empoderamento humano e isso, é coisa que se constrói junto, com empatia, essa tão falada habilidade de projetarmos em nós dificuldades, valores, sentimentos e ideias do outro; do estranho.
A ideia também não é despertar uma solicitude benevolente, ou assistencialista, tampouco salvacionista. A ideia é que, a partir desse momento de isolamento social, quarentena responsável e reflexão, sejamos capazes de viajar dentro de nós mesmos e nos projetar no outro para que compreendamos visceralmente que LIBERDADE É COISA QUE SE CONQUISTA CONJUNTAMENTE e não deve JAMAIS, ser mercadoria, moeda de troca ou privilégio de poucos.
Tempos de crise evidenciam a miséria e vulnerabilidade da nossa sociedade. Existem diversas formas de materializar injustiças... e momentos de tribulação fazem isso de forma evidente e trágica. Há algo muito errado com as bases de nossa fundação enquanto pólis e isso tudo precisa ser repensado. Sabemos que a Educação é campo de conflito, questionamentos e transformação. Assim sendo, como comunidade de ensino, somos o lugar ideal para repensar as bases, o nosso papel e propor reflexões significativas diante da crise.
A disseminação desse vírus - o corona - que rapidamente transformou-se em pandemia, traz consigo o caos e o colapso. Traz alto risco de contaminação para nós, para quem amamos e queremos bem. Potencializa nosso caos interior.  Mas não para por aí... Traz também o caos nas relações de trabalho, no contrato social - até então estabelecido e silenciado -, no impulso imanente de produção... evidencia o furo na relação social de produção. A pandemia explicita a ineficiência do sistema, quão frágil e insustentável é o nosso modus vivendi; escancara as entrelinhas, o subentendido, o mal-dito: que o sistema é mais importante do que as pessoas que nele vivem.
Estamos assistindo a concretização do inevitável: pessoas vulneráveis e fragilizadas pelo sistema partirem da situação de exclusão para a de extermínio; e é exatamente isso que o filósofo camaronês Achille Mbembe chamou ‘necropolítica’.
O repórter Ricardo Westin escreveu um artigo para El País sobre a gripe espanhola no Brasil, em 1918. O trecho que gostaríamos de transportar chama-se “Os pobres ao deus-dará”:


A epidemia escancara uma deficiência grave do Brasil: em termos de saúde, os pobres estão ao deus-dará. Não há hospitais públicos. Não é raro que as pessoas, assim que se descubram “espanholadas”, busquem socorro nas delegacias de polícia. Quem, aos trancos e barrancos, presta alguma assistência à população carente são instituições de caridade, como as santas casas e a Cruz Vermelha.

— As famílias ricas são menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiam em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus — conta o historiador Leandro Carvalho, professor do Instituto Federal de Goiás e autor de dois estudos sobre a epidemia de 1918.



Como conjugar então, sujeição e liberdade, já que prevemos diversas crises acessórias e posteriores a pandemia do coronavírus?! Se era preciso algo suficientemente forte para abolir o estado atual das coisas, já temos. Não é questão de ceticismo, pelo contrário, é a propositura de uma utopia eficaz, que age para reforçar nosso senso de coletividade e oferece esperança em um mundo incerto. 


     Continuemos em casa, mixando serenidade e inquietude. Mas, enchendo nossos corações, mentes e mãos de indignação, desejo de transformação, amor e CORAGEM. Porque depois que todo esse perigo biológico passar... ficará a consequência sócio-econômica do caos. E é aí que poderemos agir em prol de uma mudança. Algo totalmente diferente do que vivemos até agora. Talvez possamos iniciar novos projetos, estabelecer outros hábitos e padrões de consumo, amar mais, construir novas leis e uma sociedade onde o sistema não seja mais importante do que as pessoas que nele vivem; onde coisas não importem mais do que pessoas; onde o principal objetivo legislativo e institucional não seja proteger a propriedade privada e a liberdade de mercado ACIMA DOS INTERESSES DA COLETIVIDADE. Podemos nos propor a repensar nossa humanidade e estrutura diante dessa crise, nossas relações, nosso olhar sobre o outro. Estamos todos evoluindo. E precisamos ter a certeza de estarmos fazendo isso juntos.Já que liberdade é coisa que se conquista conjuntamente, não haverá espaço para quem quiser manter o status quo. Nós, em união, não permitiremos.

Carolina Parrode, quarentenista.