quarta-feira, 10 de julho de 2024

Entre a Doença e a Loucura - Parte II


"Opiniões vazias sobre questões tão sérias, por si só, podem até não matar, mas com certeza ajudam a apertar o gatilho"
Djamila Ribeiro



No Camboja, um dos mais antigos templos de Angkor: O Banteay Srei, construído no Século X. Também conhecido como "cidade da mulher".


Aprendi com a psicanálise e com a experiência de educadora que tornamo-nos humanos na medida em que relacionamos com o outro e temos a obrigação de lidar respeitosamente com seus interesses, valores e sonhos, nem sempre compatíveis com os nossos. Temos que conviver com a condição do outro. E mais: a inteligência está justamente em constituir-se e enriquecer-se em meio a essas dificuldades e recônditos do relacionamento humano. O jogo de aproximar-se, afastar-se. O amor, o respeito, o diálogo. Forma democrática, em sentido amplo. Democracia que, de certa forma, persuade e fragiliza porque, para convencer sem dominar, é preciso correr o risco de ser convencido do contrário, de deixar-se transformar pelo outro.
Ao contrário da dialética saudável, encontramos o autoritarismo. Aquela relação que domina, coloniza o outro, o reduz a mero objeto inanimado. Mas o insight está em saber que ao subjugar o outro, reduzo-me também. Abro mão da maior fortuna da humanidade: enriquecer-se a partir/mediante/com o outro.
É sempre perniciosa a relação vertical. E essa coerção tem muita força! Prova disso é o trágico caso da inspiradora da Lei nº 11.340, a farmacêutica Maria da Penha, que após sofrer violência nas mais variadas instâncias - psicológica, afetiva, física dentre outras – levou um tiro de espingarda de seu então esposo. Apesar de ter escapado da morte, ele a deixou paraplégica, situação em que se encontra desde a data do crime, em 1983. Quando, finalmente, voltou à casa, sofreu nova tentativa de assassinato, pois o marido tentou eletrocutá-la. Enfim, apesar da óbvia constatação das agressões domésticas sofridas por Maria da Penha, quando criou coragem para denunciar seu agressor, ela se deparou com uma situação que muitas mulheres enfrentavam nesse caso: incredulidade por parte da Justiça brasileira.
O caso de Maria da Penha só foi solucionado em 2002 quando o Estado brasileiro foi condenado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Desta maneira, o Brasil teve que se comprometer em reformular suas leis e políticas em relação à violência doméstica.
Apesar do sucesso da Lei Maria da Penha, as estatísticas da violência contra a mulher no Brasil continuam altas: todos os dias cerca de 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Em 2013 foram registrados 4.762 assassinatos de mulheres. Destes, 50.3% foram cometidos por familiares, e em 33.2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex.  Três em cada cinco mulheres jovens já sofreram violência – em todas as instâncias - em relacionamentos segundo pesquisa feita pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (nov/2014).
É importante salientar que a lei visa proteger a mulher da violência doméstica/ familiar e atos abusivos, tais como o afastamento dos amigos e familiares, ofensas, destruição de objetos e documentos, difamação e calúnia... dentre outros os absurdos praticados pelos “parceiros amorosos” contra suas mulheres. É claro que quando há violência física, ela é manifesta e incontestável, chegando até a extremos como no relato que lemos acima. No entanto, importa notabilizar que a violência física é uma das modalidades, havendo outras! As outras não são tão manifestas, mas também deixam sequelas ao longo de toda a vida da mulher. Existem mulheres que mesmo após muitos anos do rompimento, ainda encontram-se em convalescimento ou paralíticas emocional e psicologicamente. Parte daí a necessidade que tenho em dizer que “feminismo” não é sobre guerra entre os sexos e nem sobre uma certa ‘compensação histórica’. É sobre  luta por igualdade de condição humana. É um sentimento necessário e indispensável para a dignidade e sobrevivência saudável, em primeiro lugar, das famílias, e em sentido amplo, da própria civilização.

Carolina Parrode, minoria ativa.

terça-feira, 2 de julho de 2024

E se...

 

"Não sei se espíritos enganadores pairam sobre este lugar, ou se é no meu coração que está a ardente e celeste fantasia que fornece uma atmosfera de paraíso a tudo o que me rodeia"

Os sofrimentos do jovem Werther, W. Goethe.

 

 

Era um sábado cansado e quando cheguei você já estava lá com seus óculos escuros e uma cerveja de garrafa. A mesa tinha um desajeito.

A voz grave da cantora entoava Christian & Ralf, o cachorro caramelo com os bagos rente às patas perambulava na esperança de degustar carne.

Um senhor, alegremente dançava e sorria com suas gengivas saudáveis, em meio a calçada feita salão de baile.

 

Ele me fez rir.

 

O ocaso trouxe sentimentalidades cujas modulações mesclavam descrença, graça e delicadeza. Quimiotipia do século XIX, deixei o barco descer livremente a correnteza.

 

Tinha um olhar que me atravessava deliciosa e profundamente. E foi aí que parei de olhá-lo de soslaio. Fez por merecer.

Comecei a achar adolescentemente carinhoso, ridículo-quase-sedutor o jeito como segurava minha mão.

Tinha riso e espontaneidade.

 

Veio o domingo e eu estava pensando em você.

Dia ordinário e tranquilo, não eram assim as manhãs dominicais: deitada, como um álibi; pensamento tomado por desatino.

Talvez tenha sido seu olhar meio caído, feito cachorro. Eu gosto de cachorros. Talvez soe familiar.

 

Sem desculpas.

 

Meu corpo se antecipa, conhece o mundo antes de mim. Os corpos são convincentes e cabais.

Contudo, você não me deixa conhecer nosso mundo através do seu corpo.  Talvez se deixasse, eu nem tiraria meu domingo para desatinar. Provavelmente estaria almoçando com algum dos não-eleitos. São todos eles uma massa masculina pairando na minha atmosfera.

Tenho cautela para não ser exigente demais e, ainda assim, rechaçar o descabido. Se é nonsense, pode significar meu fracasso no divã.

 

Ainda bem que és competente em fugir, porque se cai uma gota de erotismo nessa ternura, não haveria vinho e nem disciplina com força de impedimento. E, nesse caso, não presto para o trabalho.

 

Gosto do werther, mas você exagera. Acho inútil, porém funcional. Sou boa de espera, mas não muito.

Seu cortejo me provoca e desanima, apesar da minha voracidade usual.

 

“Posso?"

Desânimo. Desalma.

Sigo aquela picada no meio da mata que indica a direção: se é vereda, a linguagem é fluente. Tudo flui, tudo frui. Usufruímos menos, bem menos do que poderíamos.

 

Não há um eleito. E se eu quisesse que fosse você?

Você não quer.


Eu sei que amanhã é segunda-feira e vai passar.

Não gostaria, mas passa.

 

Sei lá... Deve ser seu cheiro. O cheiro e a presença. A voz. Não, não. São os olhos caídos e meu gosto por cachorros. É isso.  Parou nisso.

Mas também gosto do olhar e do toque. Do beijo, nem lembro mais.

Odeio a insegurança. Sua covardia me empurra pra lá. Rabugento, ingrato com a vida... Reclama. Aprecia restaurante português, mas não come bacalhau.

Descabimento.

Seria gostoso um pouco de confiança e devoção da minha parte. É raro mas acontece.

Obedeço deleitosamente.

Mande-me te beijar, ficar ao seu lado, tirar a roupa - a minha ou a sua. Mande-me ficar de roupa. Escolha o lugar, diga que está chegando, escolha o vinho. Tente me desconcertar.


Eu queria muito você. Assim, em outro tempo mesmo. 

Queria, na verdade, que você fosse outro...

Um outro que não estragasse a poesia de tudo nos últimos cinco minutos de prosa.


Carolina.