terça-feira, 2 de julho de 2024

E se...

 

"Não sei se espíritos enganadores pairam sobre este lugar, ou se é no meu coração que está a ardente e celeste fantasia que fornece uma atmosfera de paraíso a tudo o que me rodeia"

Os sofrimentos do jovem Werther, W. Goethe.

 

 

Era um sábado cansado e quando cheguei você já estava lá com seus óculos escuros e uma cerveja de garrafa. A mesa tinha um desajeito.

A voz grave da cantora entoava Christian & Ralf, o cachorro caramelo com os bagos rente às patas perambulava na esperança de degustar carne.

Um senhor, alegremente dançava e sorria com suas gengivas saudáveis, em meio a calçada feita salão de baile.

 

Ele me fez rir.

 

O ocaso trouxe sentimentalidades cujas modulações mesclavam descrença, graça e delicadeza. Quimiotipia do século XIX, deixei o barco descer livremente a correnteza.

 

Tinha um olhar que me atravessava deliciosa e profundamente. E foi aí que parei de olhá-lo de soslaio. Fez por merecer.

Comecei a achar adolescentemente carinhoso, ridículo-quase-sedutor o jeito como segurava minha mão.

Tinha riso e espontaneidade.

 

Veio o domingo e eu estava pensando em você.

Dia ordinário e tranquilo, não eram assim as manhãs dominicais: deitada, como um álibi; pensamento tomado por desatino.

Talvez tenha sido seu olhar meio caído, feito cachorro. Eu gosto de cachorros. Talvez soe familiar.

 

Sem desculpas.

 

Meu corpo se antecipa, conhece o mundo antes de mim. Os corpos são convincentes e cabais.

Contudo, você não me deixa conhecer nosso mundo através do seu corpo.  Talvez se deixasse, eu nem tiraria meu domingo para desatinar. Provavelmente estaria almoçando com algum dos não-eleitos. São todos eles uma massa masculina pairando na minha atmosfera.

Tenho cautela para não ser exigente demais e, ainda assim, rechaçar o descabido. Se é nonsense, pode significar meu fracasso no divã.

 

Ainda bem que és competente em fugir, porque se cai uma gota de erotismo nessa ternura, não haveria vinho e nem disciplina com força de impedimento. E, nesse caso, não presto para o trabalho.

 

Gosto do werther, mas você exagera. Acho inútil, porém funcional. Sou boa de espera, mas não muito.

Seu cortejo me provoca e desanima, apesar da minha voracidade usual.

 

“Posso?"

Desânimo. Desalma.

Sigo aquela picada no meio da mata que indica a direção: se é vereda, a linguagem é fluente. Tudo flui, tudo frui. Usufruímos menos, bem menos do que poderíamos.

 

Não há um eleito. E se eu quisesse que fosse você?

Você não quer.


Eu sei que amanhã é segunda-feira e vai passar.

Não gostaria, mas passa.

 

Sei lá... Deve ser seu cheiro. O cheiro e a presença. A voz. Não, não. São os olhos caídos e meu gosto por cachorros. É isso.  Parou nisso.

Mas também gosto do olhar e do toque. Do beijo, nem lembro mais.

Odeio a insegurança. Sua covardia me empurra pra lá. Rabugento, ingrato com a vida... Reclama. Aprecia restaurante português, mas não come bacalhau.

Descabimento.

Seria gostoso um pouco de confiança e devoção da minha parte. É raro mas acontece.

Obedeço deleitosamente.

Mande-me te beijar, ficar ao seu lado, tirar a roupa - a minha ou a sua. Mande-me ficar de roupa. Escolha o lugar, diga que está chegando, escolha o vinho. Tente me desconcertar.


Eu queria muito você. Assim, em outro tempo mesmo. 

Queria, na verdade, que você fosse outro...

Um outro que não estragasse a poesia de tudo nos últimos cinco minutos de prosa.


Carolina.



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