quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Vários Amores, Uma Só Vida - Parte II


Toda demanda é uma demanda de amor
Jacques Lacan

Ella entrega seu corpo sobre a cama, cruzando os dedos apoiados no ventre... distrai-se com seus próprios pensamentos naquele palco.

Às 14h ele se aproxima, flagra-a em meio às distrações e a desperta de seus próprios devaneios. Ella, hesitante, arregala os olhos como quem tenta abarcar a realidade presente... distante de suas quimeras! A impressão que tinha é que seus pensamentos estavam gritando.

Foi então que surgiu a indagação: - "Você está apaixonada por outro homem?!" A resposta estava posta... essas coisas acontecem nos recônditos do matrimônio.

Mais de uma década juntos... Juan era seguro da autenticidade de seu relacionamento! Mas o que dizer dos pensamentos de Ella, que vagavam longe naqueles dias... Seus suspiros anônimos que divagavam em meio a desejos que ele jamais poderia alcançar. E apesar de sentir-se infernizado por essa ideia, nada havia que pudesse fazer. Ella tinha mente livre, que oportunizava outros mundos, não importando onde estivesse seu corpo.
Por onde andava os pensamentos de Ella? E o que conseguiu fazer deles?










Ella é uma mulher contemporânea. Poderia ser eu... ou você! Sabemos que essas histórias acontecem inclusive nas melhores ‘instituições’.

Quase dois séculos antes de Ella, em 1830, durante um jantar, o filósofo John Stuart Mill conheceu Harriet Taylor. Apaixonaram-se perdidamente. Entretanto, ela estava casada há quatro anos com um farmacêutico, John Taylor. O relacionamento se manteve na impossibilidade por muitos anos, até 1849. Os apaixonados se casaram dois anos depois em Paris.

Harriet teve grande influência na filosofia de Mill e contribuiu especialmente para seu feminismo liberal. Mill creditou a ela a coautoria de muitas de suas obras. Os dois trabalharam juntos nas ideias centrais do pensamento inovador do filósofo. Infelizmente Harriet morreu em 1858.

Pois então... biografias, ficções e até a vida real/atual/factual estão recheadas de histórias assim. O amor é uma linguagem que deve ser compartilhada pelas pessoas e como toda linguagem, é feita de códigos. O amor é um tema tão extenso que abarca praticamente todos os atos da nossa existência.

Então.. vamos falar de amor (esse - também - bonito, que acontece entre um homem e uma mulher)

Afinal, é possível atração erótica, intelectual e afetiva sem haver a entrega física, passional... carnal? De que falamos quando adentramos no terreno estranho do amor ‘proibido’ ou ‘interditado’? Que sentimento é esse, qual circunstancia é capaz de impedir um homem e uma mulher de se entregarem ao desejo de estar juntos... unidos... em toda a sua potência libidinal? É possível o inconsciente com sua atemporalidade, dinamicidade e regência pelo princípio do prazer, se curvar a esse tipo de (des)mando institucional da civilização? Se sim, a que custo?! Então... essas são perguntas que meus impedimentos e limitações fazem o tempo todo... e faço em silêncio.
Que não exista a ação... já que falamos aqui da maioria de nós, neuróticos adestrados. Mas o desejo... (é) chama! É incrível observar como o desejo movimenta os corpos. É puro movimento porque só desejamos aquilo que não temos, portanto, é a falta que instaura o circuito do desejo. 
Adoro a confissão de Sócrates diante dos comensais no banquete, quando diz “(...) pois confesso não entender de nada mais, senão de amor”. Por certo... tenho para mim que sem amor, a humanidade não poderia existir um só dia!

Embaraçada entre tantas reflexões inúteis, concluo timidamente que diante dos freios sociais que nos impedem de passar ao ato, talvez o que prevaleça seja o amor à verdade, vez ou outra, sobre tudo mais, inclusive sobre o amor ao amor. Se considerarmos a ‘verdade’ como continente da realidade... não sei  (pensamento inconcluso aqui).
Todavia, lembremos que desejos passionais são águas... águas sujeitas a tempestades e tsunamis vez ou outra!


Carolina Parrode, desejante e desejada.


domingo, 5 de agosto de 2018

Res Publica, Res Privata

"O que é natural, não busquemos nos seres depravados, mas naqueles que se comportam de acordo com a natureza"
Aristóteles, Política.



É possível o ser humano alcançar o conhecimento genuíno? Apesar de saber que não, esse furor nunca me abandona. Deixa minha mente inquieta, meu coração angustiado e minha alma sedenta.

Uma das primeiras inquietudes como aspirante a jurista, foi quando das primeiras aulas de Direito Romano que assisti na Universidade, ainda no século XX. 
Depois de um tempo, me apaixonei por Direito Público e aí... questões e mais questões arrumei para minha vida jurídico-epistemológica! A sede de saber transformou-se em 'furor educandi' e, desde então, dou aulas de Direito Constitucional para crianças entre 7 e 10 anos de idade. 
O fato é que eu estava às voltas com Rousseau (pessoa que eu amo e odeio ao mesmo tempo, conto o motivo depois)  e des-cobri que a culpa da desigualdade econômica, social e política tem duas matrizes:
A primeira é a problemática da instituição da propriedade privada. A segunda é a própria civilização, malignamente ambígua.
Olhem só que trecho forte (porque Rousseau é o rei do "faça o que eu digo, não faça o que eu faço"):
"O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer 'isto é meu' e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: 'não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém " (p. 80)

Pois é... minha vida tem temas e trilha sonora. E esses  antagonismos (que para mim são complementares) como "coletivo/individual", "público/privado", "de todos/de ninguém" são temas da minha vida, dentre outros, e meus neurônios se desgastam em torno deles!

Vejamos outro cenário: 
Passeando pelo Rio de Janeiro vi muros/portões pichados "Não fui eu"... desabafo e pichação em letra bonita digna da melhor professora alfabetizadora. Instantaneamente lembrei-me do artigo de João Moreira Salles para a Piauí de abril "Anotações sobre uma pichação -  Inocência, culpa e responsabilidade nas ruas do Rio de Janeiro". Na época li o artigo para meus alunos e conversamos muito sobre responsabilidade coletiva, infortúnio alheio, alteridade e empatia - delícia de aula.




Fato é que o articulista dizia assim no introito: "Não sendo enunciada por ninguém em particular, a frase pertence a qualquer um. A sensação de que "Não fui eu" fala de nós é uma confirmação de que, dado o alheamento geral, o melhor é jogar a toalha e cuidar da própria vida! (...) se cheguei aqui apesar dos outros, o que diz respeito ao mundo não me concerne. Natural, portanto, que eu me exima de toda responsabilidade coletiva. O infortúnio alheio não me pesa. Não fui eu."

Enfim... o que tem a ver um filósofo francês, a epígrafe do Aristóteles, o artigo de João Moreira Salles com a pichação nas ruas da metrópole ?! 
O que tem a ver a pichação com  reflexões sobre res pública e res privata?!
Sei não! Eu estava aqui só divagando sobre duas andanças vividas no mesmo dia: o caos da metrópole e pensamentos iluministas.

Carolina Parrode, pensante.





sábado, 21 de julho de 2018

Entre a Doença e a Loucura - Parte I





"Aprendi que, aconteça o que acontecer, pode até parecer ruim hoje, mas a vida continua e amanhã melhora"




Fala-se muito sobre relacionamento abusivo. Vivemos na era no feminismo, do tal “empoderamento” (palavrinha estranha, mas isso não importa), das denúncias de assédio, machismo e misoginia, da luta pela equidade etc. É muita informação importante e relevante produzida sobre o tema. São estudos, relatos, diagnósticos, autoajuda, receitas, conselhos... enfim, vê-se de tudo!
É possível encontrar inúmeros textos interessantes na rede... e também receitas e exageros. Depara-se com “Superando o fim de um relacionamento abusivo”, “Como superar um relacionamento abusivo em 28 passos” (...) e mais um monte de títulos.
Existe uma verdadeira campanha para que as mulheres diagnostiquem seus relacionamentos e, caso percebam-se submetidas a tirania de seus pares, que possam encontrar forças para sair desse lugar de jugo.
Por óbvio que sair de um relacionamento assim é um passo muito importante, no entanto é a vitória de uma batalha, mas não da guerra. Nem de longe este seria o fim da história... não é bem assim que a banda toca. O sofrimento ecoa por longo tempo.
Bem, para boa parte das mulheres não seria preciso exercício de empatia e altruísmo para imaginar/saber as condições de quem vive às sujeições de um “amor doente” (se é que pode-se chamar de "amor"). Muitas de nós vivenciamos essa experiência através de amigas, irmãs, vizinhas, filha, mãe ou através de nossas próprias experiências. Vamos juntas...
Depois de anos sofrendo sozinha, choros, noites em claro, reza brava, esforço e mais um sem número de fatos esdrúxulos, ela deve começar a pensar: “Será que eu estou louca, sou fresca ou realmente já está na hora de desistir desse relacionamento (porque vivo um inferno)?”
Depois de centenas de vezes vendo-se em situações onde pensa: “Fique calada que acaba mais rápido. Não retruque que já está acabando”. Depois de várias vezes escutar o aviso do superego: “nunca argumente com alguém alcoolizado”.
Depois de milhares de vezes de “vou sair de fininho e dormir ali num canto para não me indispor”. Depois do olhar estranho de várias pessoas... Olhos abertos e bocas bem fechadas.
Depois de tudo isso e mais um pouco, a mulher vai percebendo que algo está errado, e não é com ela!
Ver-se em uma situação assim é como a sensação de observar, inerte e paralítica, a própria lucidez esvaindo-se. Indo embora. Abandonando o barco, saltando ao mar.  E então, como em um filme de terror, a mulher debate-se dentro de si mesma. “É louca”, julgam.
Deve haver um momento em que a lavagem cerebral é tão grande e, ela já foi tão longe na missão de “permanecer”, que parecem ser duas mulheres habitando um só corpo.
Uma, a mulher inteligente que forjou-se na intelectualidade, olha bem para a outra: observa e julga compassivamente. A vê sucumbindo, enlouquecendo. Adoecendo. Mas a doença atinge as duas. A loucura, apenas uma. São doenças que desregulam a pele, o estômago, o apetite, a concentração e os cabelos da cabeça. Estragam o humor, embaçam a beleza, a maternidade, a produtividade e sua autoimagem.
A mulher inteligente é forte e revolucionária. Então a louca acaba valendo-se de sua fortaleza para tentar “fazer o que é certo” e permanecer ali mais um pouquinho... pushing a little bit harder. Afinal.. yes, you can! Então, por várias vezes ela assiste, inerte, sua lucidez indo embora. E vai mesmo. Lucidez que vai, doença que vem. É como ver-se impotente diante de si mesma. Imagem estranha.
Nunca duvidemos da capacidade de um homem extremamente impositivo e machista, reduzir e suprimir a inteligência de uma mulher.
Você olha para ela... moça bonita e inteligente. Forte. E mesmo assim, há tanto tempo, submete-se.



Carolina Parrode, mulher.

terça-feira, 13 de março de 2018

Vários Amores, uma só vida

A sociedade contemporânea advoga um ideal de igualdade não individualizada. Percebo que “igualdade” hoje significa “mesmice”, ao invés de “unidade”. A exemplo disso observamos o equivocado pleito de “igualdade entre os sexos”. Igualar para que? A polaridade entre eles é muito bem vinda, no meu ponto de vista, já que o amor erótico se baseia nessa polaridade.

Eros e Psiquê de Antonio Canova, 1793

E o amor?! Pois é... Sem amor, a humanidade não poderia existir um só dia! Um querido alemão me ensinou que “o desejo de fusão interpessoal é o mais poderoso anseio do homem. É a paixão mais fundamental, é a força que conserva juntos a raça humana, clã, a família, a sociedade. O fracasso em realiza-la significa loucura ou destruição – auto destruição ou destruição dos outros”. Pois sim! E o que tem a ver o “amor” com o “desejo de fusão interpessoal”, Sr. Fromm?! De que espécie de união falamos quando falamos de “amor”? Será que é uma resposta amadurecida ao problema da existência, ou falamos das formas imaturas de amor que podem ser chamadas “união simbiótica”?


Então te pergunto: É possível viver uma vida inteira ao lado de um único alguém? Amá-lo unicamente? Realmente não sei, pois cada ser guarda infinitas possibilidades de amor. Mas... eu humildemente guardo uma lógica (louca), que exporei a seguir: se a atividade criadora é a própria inteligência, então... se fosse possível aos amantes acessar o intelecto (aqui está a loucura do negócio), eu diria que o amor inteligente é a capacidade de amar o outro para além daquilo que ele oferece. Ou seja... ser criativo. Chamaria isso “trabalho criador”, “atividade criativa”... sei lá. 

Quem sabe isso quer dizer "amor"...
Carolina Parrode

EuroTrip não, EuropArte

Em nosso mundo dual, em muitos momentos, temos que explicar que a antítese de trabalho não é ócio, como, para a criança, o avesso de sério não é brincar. Enquanto trabalhamos, nos alegramos, amamos, somos criança, descansamos e folgamos nossas dores e ansiedades. Aonde vamos e estamos, somos nós e o nosso trabalho de aprender e ensinar a vida. Somos professoras a todo o momento, a toda a hora, em todo o tempo, permanentemente. E nosso desejo de refinamento deste ofício brincante também é invariável.





















Sabíamos, há muito, que o ser humano que não conhece a arte tem uma experiência de aprendizagem limitada. Escapa-lhe o sonho, a força das linguagens a sua volta, a sonoridade instigante da poesia, da música, das cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da vida, o significado da verdadeira existência humana. Desta feita, a “Biografia do Caminho” resolveu percorrer Portugal, Espanha e França em vias de experimentação da arte, e junto à isso compreender a história, e a lida com a realidade mundana deste continente; também, em encontros com a biografia dos mais belos e importantes artistas europeus em seus contextos de vida e subjetividades; em lugares onde o “era uma vez”, acontecia... Através de diferentes formas de registros e expressões.
















A “Biografia do Caminho” pela Europa foi uma ode à beleza, a amizade e a nossa precisão de aprendizes. “Diaspoemas” alegres, simples, bem humorados, de liberdades desmedidas, noviciados de amor pelo que fazemos. Uma compilação de coisas boas que a vida pode nos oferecer e que ficará protegido em nosso íntimo, para recordar quando formos centenárias. Lembranças de sentimentos apaixonados pelos lugares, de sorrisos brincadeiras e trovas que só amigos parceiros de muitas e diferentes viagens  constroem. Sentimentos poéticos pelo mundo, pelo outro e pela vida.



A diante, teremos "edições especiais" de publicações, relembrando entre nós e compartilhando com vocês todas as boas vivências (e as não tão boas também, rs) que tivemos enquanto "A Biografia do Caminho" percorria as estradas da Europa. E por falar em estrada... 


Tentamos por 6 minutos conscientizar você, caro leitor, a usar sacos de papel. Tentamos! 

(Bom, ao menos já avisamos sobre os momentos não tão bons... rsrsrsrs)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Somos os Lírios do Campo


“A guerra deve ser em função da paz,
A atividade em função do ócio,
As coisas necessárias e úteis em função das belas” 
Aristóteles


Hoje, elegemos falar do bom e do melhor dessa vida! Nada de vazios, tédio ou melancolia. Queremos exaltar a força extraordinária, a vitalidade e potência criadora que irrompe em nós e faz o nosso sangue ferver. É preciso falar da alegria, do riso, das banalidades e do ridículo que há em nós. Necessitamos do cômico e do trágico; de Dionísio e de Apollo. Do barroco e do clássico. Gostamos e queremos brincar “bem na hora da explicação da tarefa de casa”.

Sabemos que muitas vezes a noção de trabalho está centrada na filosofia “no pain no gain”... nessa idolatria maluca e competitividade. No entanto, acreditamos que uma ‘produção eficiente’ não necessariamente está ligada ao tempo que você passa na farfúncia.

Pensamos ser possível trabalhar com alegria e divertimento... visando uma postura ética, “meta-humana” (ops!) objetivando distribuição equânime da riqueza, do trabalho, do saber e do poder. Confessamos nossa utopia (mas a confessamos juntamente com Thomas More).

Segundo o italiano Domenico De Masi “o futuro pertence a quem souber libertar-se da ideia tradicional do trabalho como obrigação ou dever e for capaz de apostar numa mistura de atividades, onde o trabalho se confundirá com o tempo livre, com o estudo e com o jogo, enfim, com o ‘ócio criativo’ ”.

E se a delícia da vida mora na sagacidade do humor, no prazer de fazer o que se ama, na capacidade de canalizar esse vulcão... essa energia libidinal na produção laboral; na vocação de ser o que se faz e fazer o que se é... Esclareçam, por favor: por que cargas d’água exigem de nós tamanha seriedade e semblante!?

Ah esse suor que lhe escorre da testa... Quanto respeito ele denota!

– “Acabou a brincadeira!” Dizia a professora da Cristina quando queria inculcar em seu tímido cérebro as operações matemáticas.

E assim ela foi crescendo, engordando sua consciência com fantasmas, culpas e faltas. Aprendeu a disfarçar suas brincadeiras. Camuflou-as em buscas e inquietações. Agora, aos 50 anos, a alegria pulsa, sem constrangimentos! O júbilo está ao seu alcance, por boa parte do tempo. Seu corpo lê seus acordes, dança, canta, e junto, a língua se poetiza. As moléculas se agitam. Sente os sopros dessa delícia saltando pela pele e endoidece em festa com os amigos, com os amores.

Carolina conta que em seu tempo de “lápis e carteira” não existia a nomenclatura tão usual atualmente: bulliyng. Bem... não existia a nomenclatura, mas as práticas... essas sim! E a freguesia mais assídua eram as professoras e diretoras, que dotadas de uma perversidade ímpar, rezavam a cartilha do sistema educacional da época.. aquele tradicional, autoritário, religioso, prussiano, capitalista e sanafobitch.

- “Licença, professora... preciso ir ao banheiro”, a menina pergunta diante de toda a sala de aula.

- “Vai fazer o que no banheiro? Preciso decidir o tamanho do papel higiênico!”

Pois é... Bem sabemos quão alegrinhas e desavisadas as criancinhas podem ser. Tenho certeza de que nenhum de nossos alunos escutaria inerte, resposta tão grotesca. Nenhum professor de nossa Aldeia sairia ileso caso quisesse colocar suas insatisfações no lugar errado.

Essa liberdade é uma conquista. E é gradativa! Quanto antes proporcionarmos a possibilidade de liberdade às nossas crianças, tanto melhor! Mais inteligentes serão!

Quantos ‘haveres’ e ‘afazeres’ deixamos de assenhorar por conta das expectativas de outrem, de conceitos morais que renegam o bem comum, o amor e a alegria. Grandes e altas vozes, vindas do passado, se tornam a nossa própria voz para dizer o certo e o errado, o bem e o mal. Ah, felizes aqueles que conseguem uma voz interior que canta músicas festivas e declama poemas de amor.

Essa liberdade vivemos em viagens, leituras, amizades, e pasmem: no trabalho! Sim... vivemos liberdades nesse lugar de ‘oferecimento de belezas’. Nos entregamos e topamos o desafio da vida e fizemos do trabalho, um caminho, uma saída... a sublimação nossa de cada dia. O sinthoma. Uma das nobres possibilidade de elaboração das loucuras.

Bem sabemos que ainda muitos discursos ressoam em arquétipos que tem o trabalho como algo repleto de regras rígidas e sóbrias. São infinitos os absurdos organizacionais, mas não em nossa “Aldeia”, não em nosso quadrado. Divertimo-nos no que fazemos, sem antagonismos. Há uma harmonia de fazeres e deleites entre o acordar às cinco ou seis da manhã e as boas noites de sono.

Somos cúmplices de De Masi e não pregamos vagabundagem! Aliás, vivemos em desacordos com alguns indolentes parasitas que dedicam o seu tempo em desperdícios para a nossa sociedade. Mas se nos perguntarem se já vadiamos, se já jogamos tempo fora, imediatamente te convidaremos para uma cantoria animada... ou quem sabe para uma desajeitada dancinha pélvica regada ao som de Sidney Magal!


Esse foi laborado a quatro mãos e ‘performatizado’ a incontáveis gargalhadas!


Pensar a produção como prazer é uma inovação existencial e não simplesmente logística. É importante que em toda atividade esteja presente a criação de um valor, mas juntamente com isso, o divertimento e formação. Isso é ócio criativo!

E dizemos mais... essa observação empírica de que falamos aqui, já era há muito uma verdade bíblica. Vejamos: “aprendei dos lírios do campo, que não trabalham nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em toda sua glória, se vestiu como um deles”.




Carolina Parrode e Cristina Moraes, 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

A Liturgia Extraordinária

Domingo. Almoço de família. Todos ali, de mamando à caducando. Amigos e seus pares – recentes e antigos... todos, enfim! O ambiente não estava tão divertido e carecia de uma animação. Foi então que decidi pedir ajuda ao meu querido. Ele estava plácido ali na biblioteca...

- Carlos!

Ele veio silente... chegou até mim com sua usual inteligência, humor, perspicácia e fina retórica.

É claro que “O Amor Natural” talvez não seja a escolha mais adequada para um pequeno recital no almoço de domingo... Mas confesso que a experiência foi, no mínimo, divertida! Aliás, falar de sexo em meio aos humanos, sempre é!

O que Drummond faz em “O Amor Natural”, nos cora as bochechas diante do avô, mas também nos anima e nos recoloca. Juntamente com o poeta, admitimos uma derrota diante das consumições eróticas. Porque é bom ler Drummond, de qualquer jeito e em qualquer ocasião!


E bem sabe quem me escutou naquela tarde: o que mais houvesse para acontecer na cama entre homens e mulheres, estava lá... escancarada na poesia. Como pode!? Aquele velhinho tão terno, tão respeitável!

Pois é, mas sem deixar nossa perspicácia ser embaçada pela óbvia timidez mineira drummondiana, bem sabemos que Carlos já cultivava o erotismo desde sempre! Aquele humor, aquela ironia, a inteligência, a paixão!

E assim transcorreu nosso ordinário almoço de domingo... Drummond rendendo-se a sua inusitada produção de poemas e os comensais rendidos... entregues à degustação de seus escritos... passeamos todos de mãos dadas entre o erotismo, a concupiscência e a carnalidade, em completo despudoramento dominical.


AMOR — POIS QUE É
PALAVRA ESSENCIAL


Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.



Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?



O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.



Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?



Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.



Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.



E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.



E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.



Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.


Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.


(do livro: O Amor Natural. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.) 














Carolina Parrode, amante.




Caro(a) leitor(a), suponhamos que se chegou até aqui, se degustou, com e como nós, os escritos de Drummond, certamente algo te acalora. Se assim for, que bom! Não resfrie. Ouça:  


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O roteiro da vida real



O que é exatamente uma ausência? Drummond em um dos meus poemas favoritos disse:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
[...] e essa ausência assimilada
ninguém a rouba mais de mim...” 
Com alguma frequência, assisto meninos crescerem entre ausências. Crianças que na idade adulta, ainda estarão na infância reclamando o amor que lhes faltou quando eram pequenas. E mantem-se assim, até o momento em que aprendem a encontrar a satisfação, o desfastio e a alegria nelas e por elas mesmas.

Dia desses, no cinema, me deparei com o cineasta russo Andrey Zvyagintsev, em Loveless, um dos fortes candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Longa que expõe a aspereza, a dor e os vazios da falta de amor. No início da trama, um menino brinca com uma fita de isolamento que traduz seu exílio. Entre ele e seus pais, grandes abismos e nenhum espaço para o afeto. O amor e a atenção estão direcionados para outras pessoas, outras necessidades. E dentro deste cenário gélido, desértico, visitei a menina que fui, lembrei-me das meninas que fiz nascer e de tantos outros que considero meus.

Cena do filme Loveless

Crianças e suas mágoas, suas dores e hematomas. Já dizia o poeta que “nascer é abrir-se em feridas.” Machucados que se fazem à mercê do desejo dos pais e, principalmente, os que contém a sua autoria. Sim, porque eu, enquanto mãe, entre tantos não saberes, tenho certeza que todas as minhas faltas provocaram outras tantas em minhas filhas.


Me culpar e chorar os buracos, nada resolve e nem auxilia consolos. A procura por culpados diante do adoecimento de uma criança é inoportuna, isso porque, pais e filhos são dinamicamente participantes e compartilham de ressonâncias do que chamamos vida, em um elo de infortúnios que se repete por gerações. Para ferir com instrumento cortante essa conexão, tudo o que me esforço em fazer é assumir minhas responsabilidades incorporadas a essa linha geracional, na consciência do meu melhor, na lucidez e remissão das feridas que se abriram na minha infância e na minha capacidade de amor.


Ausência e presença são episódios de qualquer vida humana desde que nascemos. A elaboração da angústia do que nos falta é aprendida nos espaços de aparecimento e desaparecimento de pessoas e haveres. O bebê afasta-se do útero e se projeta momentaneamente num espaço vazio, até o desejado encontro com a mãe e o acolhimento em seu amor. É nesse tempo-espaço de ausências que começamos a elaborar a faculdade de estar sozinho. Os bebês adoram quando os pais brincam de fazer coisas desaparecerem. Jogo que divertia muito a mim e as minhas filhas. É o início de um envolvimento com a nossa solitude, que mais tarde se transforma numa experiência de saber ficar só, consigo mesmo.


Ordinariamente os pais têm dificuldade de sustentar as ausências dos seus filhos. Ausências não podem ser confundidas com abandono, como no caso do filme russo Loveless. Estas ocorrem quando os pais sustentam a possibilidade de seus filhos descobrirem outros amores e experimentarem a vida para além deles. A criança que é autorizada pelos seus pais, é tomada na sua competência de provar da vida para além do visível. É a capacidade de encontro com os nossos vazios, medos e dores, e sabermos que ainda há vida. Puti!!!



Precisamos encontrar nossas ausências rastreando o estar “em mim”. É esse o bálsamo capaz de cicatrizar minhas chagas pela vida afora. É essa a fragrância para o corpo e para a alma das minhas filhas, o oásis dos meus meninos e para todas as crianças escondidas em nós.

Cristina Moraes, espectadora protagonista.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Panem et Circenses


Nesse Carnaval, Cristina e Carol escolheram caminhar para ali, bem na esquina... para a Capital Federal! Esse lugar que já foi o lar de Carol em tempos remotos... Brasília! Cidade com ar diferente... com cheiro de nostalgia e que desperta a vontade de raciocinar.




Brasília, apesar de seus traços retos e tantos planejamentos urbanísticos, me inspira LIBERDADE. É como se fosse o casamento de um virginiano com uma sagitariana convicta... um paradoxo que por vezes é harmônico... outras tantas, conflituoso.

Mas enfim... é Carnaval! É a festa do povo, é a festa da carne. Independentemente se o folião é de rua ou de netflix, o fato é que o Brasil pára e todos aproveitam o feriado seja para descansar, farrear, organizar as gavetas ou simplesmente fazer o que quiser no horário que quiser.




A expressão panem et circenses advém do período de dominação romana e era o modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio. Esta frase originou-se a partir do humorista e poeta romano Juvenal e no seu contexto original, criticava a falta de informação do povo romano, que não tinha qualquer interesse em assuntos políticos, e só se preocupava com o alimento e o divertimento.

Assim, nos tempos de crise, as autoridades acalmavam o povo com a construção de enormes arenas, nas quais realizavam sangrentos espetáculos envolvendo gladiadores, animais ferozes, acrobacias, bandas, espetáculos com palhaços, artistas de teatro e corridas de cavalo. Outro costume dos imperadores era a distribuição de cereais mensalmente no Pórtico de Minucius. Basicamente, estes “presentes” ao povo romano garantia que a plebe não morresse de fome e tampouco de aborrecimento. A vantagem de tal prática era que, ao mesmo tempo em que a população ficava contente e apaziguada, a popularidade do imperador entre os mais humildes ficava consolidada.
E então?! Será que o Carnaval é a festa do “Pão e Circo” por excelência?! Talvez, o evento cultural não seja o problema e sim o modo como nós, brasileiros, encaramos nossas festividades culturais, incluindo a Copa do Mundo... etc. 

Certa vez aprendi com Bertolt Brecht que:
“o pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio depende das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce à prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo ”

Enfim, não vejo mal algum em brincar o Carnaval como se não houvesse amanhã... em fazer o que quiser, usufruir da liberdade que os tempos atuais sugerem. No entanto, é importante saber... ter a plena consciência sócio-histórica, para que não sejamos um povo feito apenas de festas, feriados e comemorações.

Passar o feriado em Brasília foi muito prazeroso... um Carnaval feito de comes, bebes, sorrisos, danças e cantorias. 



Revi amigos queridos,


 mostrei um pedacinho de mim para meus filhos


 e experimentei da nostalgia que é rever Brasília, em meio à sua fanfarra disfarçada de seriedade e à sua boemia travestida de intelectualidade.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Enfim... Feliz Ano Novo!

Dizem que o ano novo só começa após o carnaval... Well, o meu não!
2018 começou dia 1º mesmo... e veio com tudo.




Mas quem sabe posso utilizar o pretexto para uma retrospectiva intempestiva.. Vamos lá:
Retrospectiva 2017 de um jeitinho bem suave... vou até usar as palavras  do  Voltaire, que ilustra bem meu ano de 2017...
 "Gostaria de saber o que é pior: ser estuprada cem vezes por piratas, ter uma nádega cortada, passar pelas varetas dos búlgaros, ser chicoteado e enforcado num auto de fé, ser dissecado, remar na galé, sofrer enfim todas as misérias pelas quais passamos ou então ficar aqui, fazendo nada?" 
Em 2017 o marasmo mental e emocional passou longe e vivi  muito mais nas convulsões da inquietação, do que na letargia do tédio. Ano cheio de aprendizagens! Sou muito grata por cada momento, riso e lágrimas.

Estar feliz não é sorrir o tempo todo... E se sentir corajosa e pronta para enfrentar as surpresas da vida, é uma dádiva! A somatória das minhas experiências me fizeram mais mulher... muito mais!
Em 2017 estiveram diante de mim, meus piores medos... e fui, de forma muito benevolente, obrigada a lidar com o lado mais sombrio do meus sintomas (credo).



Quase todos os meus medos se concretizaram e eu estou aqui,  mais viva do que antes.
Realmente me sinto com mais vivacidade, mais capaz de amar, mais aberta, mais mulher, mais corajosa!



É claro que na memória longínqua, insiste um leve sabor amargo de algumas cicatrizes, mas sou goiana e aprendi com minha avó que o amargo da guariroba não suporta o doce da ambrosia. É só uma  questão de deixar por conta do tempo, da coragem, da fé... Sim, porque o tempo é curativo e sabe passar!  Passa melhor para quem quer pensar as feridas, para quem se dispõe na vida, com sabedoria e amor.


Carolina Parrode, sobrevivente (e feliz). 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

O fazer de quem faz o impossível

Há uma longa discussão entre nós, que fazemos parte do corpo docente de uma Escola, sobre o distanciamento que existe entre o momento da elaboração das tarefas e a execução, com as crianças, em sala de aula. A equipe que elabora o material procura vislumbrar momentos lúdicos e prazerosos durante a execução das atividades em sala, pelo professor. Confesso que nem sempre esse anseio se realiza, e muitas vezes o que temos, são obstáculos no momento da transmissão do conhecimento. O que é normal, já que educar é um dos impossíveis da vida. Mas nem por isso deixamos de tentar com afinco, amor e beleza.


Bem, diante dos questionamentos contidos em nosso Projeto Arte, mais precisamente no item 3.2, nos deparamos com o desejo de contar muitas coisas aos meninos. Isso teve desdobramentos e uma bela colheita. Propusemos uma reflexão sobre o brincar, em comparação com o trabalho do adulto. E também sobre o amor e quão salutar o binômio freudiano pode ser na vida do ser humano.
Durante a execução da tarefa, me lembrei da inquietude de Dr. Freud em “Escritores Criativos e Devaneios” (1908) acerca da necessidade de uma investigação sobre a atividade de criação, fato que “nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor”. Freud apercebe-se, contudo, que não seria jamais através da compreensão conscienciosa acerca dos fatores determinantes e da natureza da arte de criação que contribuirá para que qualquer um torne-se escritor criativo. Há algo além. O que está além? Daí chegamos em um lugar caro: a infância. Lá onde existem os primeiros traços da atividade imaginativa. Afinal, qual a importância do lúdico? Qual a importância do brincar?

 


Aprendi rápido que “a antítese do BRINCAR não é o que é SÉRIO, mas o que é REAL”. Penso que a brincadeira imaginativa da criança consiste na forma disponível de elaboração (‘elaborar’), ou meio de sublimação de seus conteúdos psíquicos. A necessidade infantil de transformar sua realidade psíquica em ’brincadeira’ é uma brilhante saída para sua sobrevivência psíquica e manutenção de saúde mental.

Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo?  📚😉


Carolina Parrode, Educadora. 

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Oriente-se

"O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro."



Sempre fantasiamos em partir, caminhar para longe, sermos livres para estarmos do lado oposto, contrário, lá onde o sol se põe. E depois dos desejos e sonhos, fizemos acontecer...

 

Parto-parte-ir, partimos, nos despedaçamos e nascemos no oriente. Saímos das nossas conjunturas, já muito conhecidas, para inícios de outras realidades, muito diferentes, insólitas...


Primeiros dias, no corpo dividido, o sono vinha nos mais inapropriados momentos, no meio de um almoço inusitado ou durante uma conversa cheia de novidades. Mas a ideia era ver, ouvir e sentir, de olhos e corações inteiros e abertos.




Nosso íntimo foi se expandindo e em muitos momentos, a vista quase não deu conta da amplidão. Choramos... Era a emoção na forma como cada uma das viajantes, em suas particularidades, foi se entrelaçando com o lugar, com as pessoas, em dias de muito crescimento e aprendizagem.


Ao norte da cidade de Ubud, no coração da ilha de Bali, na Indonésia, abraçamos a Green School. Dentro de uma floresta, onde corre o rio Ayung, a escola reconhece, certifica e compartilha uma cultura de sustentabilidade. Crianças felizes vivem tudo que acreditamos como bom, bonito e verdadeiro. Estar lá nos assegurou agir com mais certeza nos desafios que enfrentamos na Escola Espaço Criativo.


Chamam Bali de “ilha dos deuses”, entendemos a premissa quando nos habituamos a sentir sua energia harmônica e saudável. Uma espiritualidade que justifica a beleza das cerimônias e oferendas. Fomos abençoadas nos passeios pelos arrozais, nos templos ou andando pelo mercado. A meditação, a conexão com as pessoas, com o lugar, nos alargou em amor e sensibilidade, num desejo de crescimento humano.






Depois veio a Tailândia e a variedade dos seus temperos de vida. Uma terra livre... Nas ruas enlouquecidas de Bangkok, as majestosas praias edênicas do litoral, outras e novas descobertas. A cultura Budista em meio à tradição e modernidade, a fé dourada e vibrante dos tailandeses, a beleza natural e exuberante das ilhas, se fizeram presentes em alinhavos na pele. Fomos marcadas no corpo e na alma. No traço do desenho, a representação da nossa busca de edificação do espírito.





 





O Cambodja, encheu de significado a palavra bonito. A beleza se personificou nos cambojanos. Cada pessoa é um templo, no olhar cheio de afeto, no sorriso honesto e brando, na forma como impostam as mãos e encurvam levemente o corpo em cumprimentos cheios de distinção, bondade e delicadeza. Nosso coração, muitas vezes, doeu diante dessa sé... Não entendíamos como não sucumbiram a sua história de guerras, mutilação, pobreza e morte. Nossa vontade era de um grande abraço de acolhimento, de um conforto, de fazê-los felizes.
Ficou-nos a certeza de que são seres maiores e mais fortes do que Angkor Wat e suas árvores de raízes imensas.
Mais poderosos do que todo o império Khmer. A riqueza está em como mantêm enorme disposição para o amor...


É bem verdade que o caminho percorrido por nós, nos sugeriu uma epifania... nos legou um testamento... e dos mais valiosos!
E, agora, nós sabemos, o que, antes, já sabíamos: as experiências solidificam a aprendizagem, porque a torna real.
Verificação, prova, contraprova, experimentum crucis, apalpamento, reagente, reativo, empirismo, especulação, tiro para o ar, aventura, ensaio, tentame, erro, acerto, tentativa...
Tudo o que se pode oferecer de melhor ao ser humano é a experiência! A vivência, essa sim é preciosa! Essa sim é salutar e enriquece a humanidade que há em nós! Sim.. porque acreditamos que o ser não nasce humano... humaniza-se com o tempo. Nada é tão vivo e efetivo (afetivo) quanto experienciar...
A experiência envolve os nossos sentidos, é genuinamente humana. Nos enreda nas teias da sociedade, nos torna acessíveis, nos obriga a fazer parte. E isso, porque “ser”, nós já somos... mas “humanos”? A humanização vem através da ampliação de quem somos, da descoberta de nós mesmos, na constituição paulatina de nossa subjetividade, aos poucos, na toada de uma vida.


Podemos dizer, sem titubear, que nos sentimos um ‘cadinho’ maiores do que mês passado. Hoje, vários outros seres somam-se a nós. Nada mais será como antes, simplesmente, porque conhecemos a Kadeki, nos deixamos guiar pelo Oka, trocamos ideias com o Ben, tomamos a kambutcha do Jhonny, escutamos o sotaque alemão da Steph, acessamos o sorriso da Gerda, usufruímos da gentileza australiana do Graem, aprendemos sobre comunicação gestual com o Sam, percebemos o sorriso e humildade da moderna Bell, gozamos da generosidade dos nepaleses e fomos atravessadas pela singeleza e sabedoria do Alex. Hoje, conhecemos o cheiro de Ubud e, com ele, um monte de outras coisas. Hoje somos um pouquinho mais ‘gente’ porque nos deixamos penetrar pelo olhar dos músicos cambojanos, pela súplica das crianças que se chegaram a nós, pelas lindas vozes das cantantes tailandesas. Agora sabemos... o peso e singeleza das mãos das balinesas, cambojanas e tailandesas.




Isso é arte... o ato de experimentar o mundo à nossa maneira, e a possibilidade de remeter nosso olhar para o universo individual do outro. O desenrolar dos fatos e o encontro com cada pessoa nos fizeram sentir um suporte, absolutamente divino, que podemos interpretar como um estado de graça de quem se deixa levar pelo fluxo natural da vida.



E em meio a esta aventura sagrada, mergulhamos em nós mesmas, aprofundando nossa auto-referência. Descobrimos que quanto mais nos aprofundávamos em nós, mais perto ficávamos do outro. Essa reflexão nos levou a descobrirmos novas nuances de nós mesmas, nunca antes percebidas, a nos abrirmos mais em generosidade e amor. E isso é assim porque o verdadeiro mergulho em si, a genuína auto-reflexão, não te torna egoísta, individualista, egocêntrico ou ‘ensimesmado’. Ao contrário disso, aguça sua escuta para as necessidades do bem coletivo, do Outro e daquele que está imediatamente diante de você. O olhar para o outro se amplia, se aprofunda. E se enche de amor, gratidão e compreensão.


A união do que somos, com lugares e pessoas tão diferentes, foram os desafios vividos nas terras onde o sol se põe. Se quem somos, depende de onde estamos, quando e o que está acontecendo, se somos seres sociais e históricos, o certo é que devemos nos expandir, alargar nossas possibilidades. Viver diferentes e múltiplos contextos. Essa abertura nos permitiu ir além da nossa condição universal, nos fez crescer em humanidade.



Quando rompemos com o contexto em que vivemos, em partos, partidas ou nos partindo, expandimos nossos horizontes, nossas vivências.


Quando saímos da nossa contextura, quando conseguimos olhar do lado de fora a nossa realidade, entender onde vivemos, podemos julgar, criticar nossas “verdades”, e ganhamos liberdade de escolhe-las. Podemos, assim, criar outras possibilidades...


Ao reconhecermos as nossas prisões, através das prisões do outro, transitando entre elas, fazemos tentativas de liberdade. Conhecendo, se reconhecendo, se refazendo... A viagem nos abriu caminhos, nos abriu para o outro, na disponibilidade para ser e fazer mais.


Isso pode acontecer através de uma viagem, lendo livros ou indo à escola. Esse é o exercício de liberdade a que nos propomos enquanto educadoras. Acreditamos no desenvolvimento humano, acreditamos na vida.
Creditamos e agimos a favor disso, a favor da educação e da liberdade que ela nos possibilita. A biografia dos caminhos pelo por do sol, nos fez pessoas maiores e melhores, mais conscientes da nossa responsabilidade na construção desse viver bonito para todos.
Apesar das dificuldades e resistências, não perdemos o sonho de uma humanidade nova, pois ao assumirmos a missão de educar, também elevamos nossa capacidade de pensar e construir um mundo melhor.



Relatório elaborado pelas viajantes: Cristina Mores, Carolina Parrode e Bárbara Sant'Anna Miguel
Fotografia: Bárbara Sant'Anna Miguel