quinta-feira, 6 de março de 2025

A Minha Substância

 

A Substância — filme dirigido pela roteirista e diretora francesa Coralie Fargeat — é uma obra de horror visceral e perturbador, marcada por uma estética violenta que despertou tanto controvérsias quanto elogios.


Esse filme se revela para mim como uma alegoria complexa da relação entre mãe e filha, uma dança em que o amor e a destruição se entrelaçam. Evoco aqui as minhas próprias experiências e as reflexões de Malvine Zalcberg, Simone de Beauvoir e Elizabeth Badinter sobre a construção da feminilidade e o mito do amor materno.

 No filme, vemos um corpo que se origina de outro corpo, mas que, paradoxalmente, possui o poder de aniquilar sua matriz. Tal como a maternidade, que, uma vez decidida, é irreversível, a relação entre mãe e filha implica numa troca íntima e permanente, na qual ambas deixam marcas profundas e indeléveis uma na outra.

A filha, que nasce dependente e em processo de formação, reflete-se na mãe e, em última instância, redefine-a, questionando suas próprias sombras. Esse espelhamento, que me lembra o “estádio do espelho” de Lacan, processo de constituição de si a partir de um outro, revela facetas escondidas da mulher que só emergem no exercício da maternidade.

Em A Substância, Sue e Elisabeth se entrelaçam. Quando Elisabeth olha para Sue, vê uma criação esplendorosa, sua obra-prima. Contudo, no confronto com a criatura, Sparkle também se vê como um ser fragmentado, falho, uma projeção distorcida da imagem que estava presente em seu imaginário.

Nessa dinâmica a maternidade é um espelho, no qual a mulher se depara não apenas com a esperança de concretização de seus desejos através de sua filha, mas com a monstruosidade que pode emergir dessas expectativas.

Sue, ao injetar-se os fluidos retirados da medula espinhal da matriz a fim de  continuar experienciando a vida, simboliza a transmissão do legado materno — um processo de formação que se dá por meio do que a mãe transfere de si mesma. A transgeracionalidade. Porém, há  algo de paradoxal  nesse legado, uma substância corrompida que, ao mesmo tempo que permite à filha prolongar sua experiência de ser mulher, carrega em si as neuroses e os conflitos da matriz. É legado de vida e angústia. É uma substância que alimenta e contamina, e que nos leva a refletir sobre o que, de fato, a mãe doa de si para que a filha se constitua — e, no mesmo processo, do que ela pode prescindir em busca de refinamento e ressignificações, filtrando a herança recebida para que não seja apenas repetição, mas possibilidade de recriação.

Esse filme, portanto, pode ser analisado por outro viés além do confronto estético que tanto já ouvimos. Trata-se também  de um enfrentamento existencial e simbólico, no qual mãe e filha se tornam alteridades uma para a outra. A 'adolescenta', como podemos chamar, é um ser nascido das entranhas maternas, que ao mesmo tempo fascina e fere, revelando-se como um estranho familiar que desafia e questiona a mãe em sua essência.

 


Assim, A Substância foi para mim, em meio a um momento de conflito com minha amada filhota adolescenta, uma inquietante, horrorosa e  bem humorada exploração dos limites da maternidade, uma meditação sobre o que acontece quando a mãe se vê dilacerada pela própria criação. É um filme que transcende o horror ao expor as complexidades do vínculo entre mãe e filha, subvertendo o mito do amor materno como algo puro e imaculado, e, em vez disso, revelando-o como um processo tão intenso quanto destrutivo, tão essencial quanto ameaçador.


Carolina, mãe de adolescenta.

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