sexta-feira, 7 de março de 2025

Espelhos

 

Sou realista. Não me entrego a paixões.  Não; não me apaixonei por você. E de modo algum eu te amei. Tudo isso, na verdade, apenas um pouco; bem pouco.

Gostara da lentidão tosca de sua barba a roçar meu pescoço, dela escorrer, lenta suave aspereza, a picar frestas e talos de  frêmitos; trânsito até o cosmos que sonharás ainda entre minhas pernas.  Apreciei provar a doçura de sua potência a sobrevir, rija proa, em gozo de marés que eu desconhecia. Então, foi aprazível repousar pela pele sua, corpo sobre corpo, algum suor entrelaçado, ofegante. Em que medida chamejou em mim esse sono aconchegado, despercebido sobre as paragens do seu peito?

Gostei, então, e especialmente, das velas de sua mão a velejar por todo meu corpo. Frustrados, assim, o tempo e as tentativas de assistir, inteiro, um filme ao seu lado.

Razoáveis nossos risos. E o vinho a vazar as horas.

Seu cheiro e anatomia caíram em meu agrado? Como se não houvesse saída, divertia-me, muda, a fitar seus olhos – tão perto como as nuvens de nuances que eu percebia, camaleão brincando conforme a luz.

Gostei de conversar migalhas à mesa, pelo sofá, pela cama. Milagres da intimidade tornavam tudo mais fácil, mais livre e delicioso.

Simplório e déspota, agradou-me a servidão em seu jeito de me despir pelo olhar. Com tanto entusiasmo contemplavas meu corpo que, nesse gesto mesmo, eu já estava saciada. Límpida lascívia das retinas.  E eram olhos, lábios, mãos, língua e muito mais a me esquadrinhar.

Gostei de imaginar-me nessa nova moldura de abismos, espelhos. Era bonito ver-me com este adorno, esta voluta que foi você. Breve horizonte de eventos, paisagem.

Inventário medíocre, é doce te utilizar, apetrecho, para pintar esta tela. Tua tinta insuficiente. Que tesão tecer tais obscenidades. Orgasmo de olhar-me. Você. Em mim.

 

Carolina Parrode, ficcionista em collab.

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