quarta-feira, 10 de julho de 2024

Entre a Doença e a Loucura - Parte II


"Opiniões vazias sobre questões tão sérias, por si só, podem até não matar, mas com certeza ajudam a apertar o gatilho"
Djamila Ribeiro



No Camboja, um dos mais antigos templos de Angkor: O Banteay Srei, construído no Século X. Também conhecido como "cidade da mulher".


Aprendi com a psicanálise e com a experiência de educadora que tornamo-nos humanos na medida em que relacionamos com o outro e temos a obrigação de lidar respeitosamente com seus interesses, valores e sonhos, nem sempre compatíveis com os nossos. Temos que conviver com a condição do outro. E mais: a inteligência está justamente em constituir-se e enriquecer-se em meio a essas dificuldades e recônditos do relacionamento humano. O jogo de aproximar-se, afastar-se. O amor, o respeito, o diálogo. Forma democrática, em sentido amplo. Democracia que, de certa forma, persuade e fragiliza porque, para convencer sem dominar, é preciso correr o risco de ser convencido do contrário, de deixar-se transformar pelo outro.
Ao contrário da dialética saudável, encontramos o autoritarismo. Aquela relação que domina, coloniza o outro, o reduz a mero objeto inanimado. Mas o insight está em saber que ao subjugar o outro, reduzo-me também. Abro mão da maior fortuna da humanidade: enriquecer-se a partir/mediante/com o outro.
É sempre perniciosa a relação vertical. E essa coerção tem muita força! Prova disso é o trágico caso da inspiradora da Lei nº 11.340, a farmacêutica Maria da Penha, que após sofrer violência nas mais variadas instâncias - psicológica, afetiva, física dentre outras – levou um tiro de espingarda de seu então esposo. Apesar de ter escapado da morte, ele a deixou paraplégica, situação em que se encontra desde a data do crime, em 1983. Quando, finalmente, voltou à casa, sofreu nova tentativa de assassinato, pois o marido tentou eletrocutá-la. Enfim, apesar da óbvia constatação das agressões domésticas sofridas por Maria da Penha, quando criou coragem para denunciar seu agressor, ela se deparou com uma situação que muitas mulheres enfrentavam nesse caso: incredulidade por parte da Justiça brasileira.
O caso de Maria da Penha só foi solucionado em 2002 quando o Estado brasileiro foi condenado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Desta maneira, o Brasil teve que se comprometer em reformular suas leis e políticas em relação à violência doméstica.
Apesar do sucesso da Lei Maria da Penha, as estatísticas da violência contra a mulher no Brasil continuam altas: todos os dias cerca de 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Em 2013 foram registrados 4.762 assassinatos de mulheres. Destes, 50.3% foram cometidos por familiares, e em 33.2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex.  Três em cada cinco mulheres jovens já sofreram violência – em todas as instâncias - em relacionamentos segundo pesquisa feita pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (nov/2014).
É importante salientar que a lei visa proteger a mulher da violência doméstica/ familiar e atos abusivos, tais como o afastamento dos amigos e familiares, ofensas, destruição de objetos e documentos, difamação e calúnia... dentre outros os absurdos praticados pelos “parceiros amorosos” contra suas mulheres. É claro que quando há violência física, ela é manifesta e incontestável, chegando até a extremos como no relato que lemos acima. No entanto, importa notabilizar que a violência física é uma das modalidades, havendo outras! As outras não são tão manifestas, mas também deixam sequelas ao longo de toda a vida da mulher. Existem mulheres que mesmo após muitos anos do rompimento, ainda encontram-se em convalescimento ou paralíticas emocional e psicologicamente. Parte daí a necessidade que tenho em dizer que “feminismo” não é sobre guerra entre os sexos e nem sobre uma certa ‘compensação histórica’. É sobre  luta por igualdade de condição humana. É um sentimento necessário e indispensável para a dignidade e sobrevivência saudável, em primeiro lugar, das famílias, e em sentido amplo, da própria civilização.

Carolina Parrode, minoria ativa.

terça-feira, 2 de julho de 2024

E se...

 

"Não sei se espíritos enganadores pairam sobre este lugar, ou se é no meu coração que está a ardente e celeste fantasia que fornece uma atmosfera de paraíso a tudo o que me rodeia"

Os sofrimentos do jovem Werther, W. Goethe.

 

 

Era um sábado cansado e quando cheguei você já estava lá com seus óculos escuros e uma cerveja de garrafa. A mesa tinha um desajeito.

A voz grave da cantora entoava Christian & Ralf, o cachorro caramelo com os bagos rente às patas perambulava na esperança de degustar carne.

Um senhor, alegremente dançava e sorria com suas gengivas saudáveis, em meio a calçada feita salão de baile.

 

Ele me fez rir.

 

O ocaso trouxe sentimentalidades cujas modulações mesclavam descrença, graça e delicadeza. Quimiotipia do século XIX, deixei o barco descer livremente a correnteza.

 

Tinha um olhar que me atravessava deliciosa e profundamente. E foi aí que parei de olhá-lo de soslaio. Fez por merecer.

Comecei a achar adolescentemente carinhoso, ridículo-quase-sedutor o jeito como segurava minha mão.

Tinha riso e espontaneidade.

 

Veio o domingo e eu estava pensando em você.

Dia ordinário e tranquilo, não eram assim as manhãs dominicais: deitada, como um álibi; pensamento tomado por desatino.

Talvez tenha sido seu olhar meio caído, feito cachorro. Eu gosto de cachorros. Talvez soe familiar.

 

Sem desculpas.

 

Meu corpo se antecipa, conhece o mundo antes de mim. Os corpos são convincentes e cabais.

Contudo, você não me deixa conhecer nosso mundo através do seu corpo.  Talvez se deixasse, eu nem tiraria meu domingo para desatinar. Provavelmente estaria almoçando com algum dos não-eleitos. São todos eles uma massa masculina pairando na minha atmosfera.

Tenho cautela para não ser exigente demais e, ainda assim, rechaçar o descabido. Se é nonsense, pode significar meu fracasso no divã.

 

Ainda bem que és competente em fugir, porque se cai uma gota de erotismo nessa ternura, não haveria vinho e nem disciplina com força de impedimento. E, nesse caso, não presto para o trabalho.

 

Gosto do werther, mas você exagera. Acho inútil, porém funcional. Sou boa de espera, mas não muito.

Seu cortejo me provoca e desanima, apesar da minha voracidade usual.

 

“Posso?"

Desânimo. Desalma.

Sigo aquela picada no meio da mata que indica a direção: se é vereda, a linguagem é fluente. Tudo flui, tudo frui. Usufruímos menos, bem menos do que poderíamos.

 

Não há um eleito. E se eu quisesse que fosse você?

Você não quer.


Eu sei que amanhã é segunda-feira e vai passar.

Não gostaria, mas passa.

 

Sei lá... Deve ser seu cheiro. O cheiro e a presença. A voz. Não, não. São os olhos caídos e meu gosto por cachorros. É isso.  Parou nisso.

Mas também gosto do olhar e do toque. Do beijo, nem lembro mais.

Odeio a insegurança. Sua covardia me empurra pra lá. Rabugento, ingrato com a vida... Reclama. Aprecia restaurante português, mas não come bacalhau.

Descabimento.

Seria gostoso um pouco de confiança e devoção da minha parte. É raro mas acontece.

Obedeço deleitosamente.

Mande-me te beijar, ficar ao seu lado, tirar a roupa - a minha ou a sua. Mande-me ficar de roupa. Escolha o lugar, diga que está chegando, escolha o vinho. Tente me desconcertar.


Eu queria muito você. Assim, em outro tempo mesmo. 

Queria, na verdade, que você fosse outro...

Um outro que não estragasse a poesia de tudo nos últimos cinco minutos de prosa.


Carolina.



terça-feira, 2 de junho de 2020

Pandemia, instituições, economia e saúde mental


“Os maus, sem dúvida, entenderam alguma coisa 
que os bons ignoram”
Woody Allen



Alguém já ouviu falar do tal “Sistema de Freios e Contrapesos”?
Também é conhecida como a Teoria da Separação dos Poderes. É o seguinte: um francês, da época da Revolução Francesa, chamado Montesquieu visitou as ideias de Aristóteles, John Locke e alguns outros; juntou com os colegas e redigiu “O Espírito das Leis”. Nesse tratado, ele explica, amplia e sistematiza a divisão dos poderes.
É um tratado de passividade entre os poderes? NÃO!
É um manual sobre como um não pode interferir no outro? NÃO!
É um texto que explica a hierarquia entre os poderes? Também NÃO!
Inclusive, a Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu foi inspirada no pensamento democrata-liberal do Locke, que partia do princípio que os homens nasciam livres e com direitos iguais (‘çei’... hello Brasil, 2020). Ela surgiu na época da formação do Estado Liberal baseado na livre iniciativa e na menor interferência do Estado nas liberdades individuais. Essa tripartição clássica dos poderes se dá até hoje, na maioria dos países, e está consolidada pelo artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e prevista no artigo 2º da Constituição Federal brasileira, onde nós dividimos e especificamos as funções de cada poder.
Resumindo, a ideia principal dessa teoria é evitar a concentração de poder e estabelecer uma espécie de controle mútuo (lembrem que na época das revoluções burguesas o problema era o absolutismo, a tirania de um único soberano – o rei).
Montesquieu acreditava que para afastar governos tiranos, era preciso estabelecer a autonomia e os limites de cada poder. Com isto, cria-se a ideia de que ‘só o poder controla o poder’. 
Então, o Sistema de freios e contrapesos, mostra que cada poder é autônomo e deve exercer determinada função. Porém, este poder deve ser controlado pelos outros poderes! Assim, um Poder do Estado está apto a conter os abusos do outro de forma que se equilibrem. O contrapeso está no fato de que todos 3 os poderes possuem funções distintas, fazendo, assim, com que não haja uma hierarquia entre eles, tornando-os poderes harmônicos e independentes. 
A ideia é brilhante. Vejam só... quando o Judiciário declara a inconstitucionalidade de uma lei, isso é um freio ao ato Legislativo, que poderia conter uma arbitrariedade. 
Para que o abuso de poder não ocorra, é necessário que "o poder freie o poder".
Desta forma, a separação de poderes seria o sistema mais compatível com o Estado Democrático de Direito porque limita a tirania e abuso, e “garante” a plena liberdade política dos indivíduos e dos direitos das minorias (teoricamente).
É importante ressaltar que Montesquieu não elaborou a teoria pensando nos processos sócio-históricos do Brasil, obviamente. Por aqui, temos uma educação política precária e a desigualdade social é tão gigantesca que chega a impedir o exercício de direitos. Se o indivíduo sequer sabe de seus direitos, como exercê-los? Qual é o livre arbítrio do analfabeto? Qual a prioridade do cidadão que não usufrui da mínima infraestrutura? 
Montesquieu não contou com o fato de que, no Brasil, sua teoria seria trajada por um tecido social estruturalmente racista e violento; classista e desigual. Onde os cidadãos mal teriam condições de refletir no exercício de uma liberdade política viável. Nos planos do filósofo, ele havia traçado uma prevenção eficaz contra o abuso governamental submetendo governantes e governados às regras e aos procedimentos legais, onde ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de prévia determinação legal.
🎬 Corta!
Brasil, pandemia/2020.
Manter-se informado dos acontecimentos sócio-políticos do Brasil requer muita saúde mental e emocional. O brasileiro é um povo que sofre abuso psicológico diariamente, basta acompanhar as notícias.
Ultimamente assistimos, por parte do chefe do Poder Executivo, a proposta para a instauração de um confronto institucional: Executivo X Judiciário. É sara inverno, olaff de carvalho, 01, 02, 03, fetiche de ser amamentado na adultescência, #foraSTF, #dentroAi-05 etc.  Não suportamos mais submergir em significantes como pandemia, curva, mortos, desemprego, fascismo, racismo, machismo, homofobia, direita, esquerda, economia, bolsonarismo, saque, poder, injustiça, expropriação e tantos outros significantes, com suas enxurradas de significados.  
Se já está difícil suportar para os que usufruem de privilégios, imaginem para quem vive à margem e depende de um Estado forte nesse momento para conseguir manter sustento (sustento material e psicológico)?
Nesses dias, obter um tanto de satisfação é um trabalho hercúleo. O brasileiro assiste os órgãos do Poder Executivo e entidades a ele ligadas adotarem posicionamentos de desrespeito... Ações que minimizam a importância do Judiciário diante da nação. O enfraquecimento dessas instituições democráticas lançam a sociedade contra si e criam um clima de antagonismo institucional.
O cenário atual do Brasil mostra ao povo que o Poder Legislativo, Judiciário e governos estaduais são obstáculos constitucionais que precisam ser ‘desempoderados’. O presidente quer garantir uma gestão baseada numa visão própria da Constituição, sem submeter-se às limitações constitucionais do “Sistema de Freios e Contrapesos”. Como encontra reação, dobra a aposta no confronto e instiga seus apoiadores e eleitores. A pergunta que fica é: esse tipo de confronto é produtivo para QUEM e para QUE?! Essa espécie de antagonismo é produtiva para nossa democracia, ou a empobrece e amedronta o cidadão?
A experiência de ser brasileiro, nos últimos dias, tem se resumido a momentos de alegrias individuais, seguidos por longos períodos de desesperança, impotência e tristeza. Um momento político que poderia nos instigar ao otimismo, em verdade nos cega para beleza e empobrece nossa lógica. A noção de justiça nos foi usurpada e o que resta é uma sensação de ridículo diante da nossa indignação ineficaz. Gritar por transparência, probidade, direitos humanos e garantias de direitos parece-nos um ato infantil e descontextualizado. A noção de tempo está pervertida, pois é pautada pelas atualizações das notícias e tempestade de textos e opiniões sobre cada uma das tragédias.
Ser brasileiro é uma angústia.


Carolina Parrode, antifascista.

domingo, 22 de março de 2020

QUAL O SEU PAPEL DIANTE DA CRISE?


“Não podemos acreditar em verdadeira liberdade e democracia enquanto existirem pessoas privadas de direitos e da sua própria liberdade”
Angela Davis


“Liberdade é coisa que se conquista conjuntamente”
Juliana Borges


Em época de pandemia é preciso repensar a função social das instituições de ensino. É preciso atuar no sentido de proporcionar conhecimento e mediar bem-estar entre todas as formas-de-vida que compõem nossa comunidade – entre os membros das famílias -, ato que está muito além das técnicas pedagógicas de ensinar, do oferecimento puro e simples de conteúdos pedagógicos e grade curricular.  Pelo o que temos lido e pesquisado... a quarentena durará mais tempo e o prazo colocado pelas autoridades governamentais será, seguramente, ampliado.
A luta que se impõe à nós, nesse tempo, é a construção de um empoderamento humano e isso, é coisa que se constrói junto, com empatia, essa tão falada habilidade de projetarmos em nós dificuldades, valores, sentimentos e ideias do outro; do estranho.
A ideia também não é despertar uma solicitude benevolente, ou assistencialista, tampouco salvacionista. A ideia é que, a partir desse momento de isolamento social, quarentena responsável e reflexão, sejamos capazes de viajar dentro de nós mesmos e nos projetar no outro para que compreendamos visceralmente que LIBERDADE É COISA QUE SE CONQUISTA CONJUNTAMENTE e não deve JAMAIS, ser mercadoria, moeda de troca ou privilégio de poucos.
Tempos de crise evidenciam a miséria e vulnerabilidade da nossa sociedade. Existem diversas formas de materializar injustiças... e momentos de tribulação fazem isso de forma evidente e trágica. Há algo muito errado com as bases de nossa fundação enquanto pólis e isso tudo precisa ser repensado. Sabemos que a Educação é campo de conflito, questionamentos e transformação. Assim sendo, como comunidade de ensino, somos o lugar ideal para repensar as bases, o nosso papel e propor reflexões significativas diante da crise.
A disseminação desse vírus - o corona - que rapidamente transformou-se em pandemia, traz consigo o caos e o colapso. Traz alto risco de contaminação para nós, para quem amamos e queremos bem. Potencializa nosso caos interior.  Mas não para por aí... Traz também o caos nas relações de trabalho, no contrato social - até então estabelecido e silenciado -, no impulso imanente de produção... evidencia o furo na relação social de produção. A pandemia explicita a ineficiência do sistema, quão frágil e insustentável é o nosso modus vivendi; escancara as entrelinhas, o subentendido, o mal-dito: que o sistema é mais importante do que as pessoas que nele vivem.
Estamos assistindo a concretização do inevitável: pessoas vulneráveis e fragilizadas pelo sistema partirem da situação de exclusão para a de extermínio; e é exatamente isso que o filósofo camaronês Achille Mbembe chamou ‘necropolítica’.
O repórter Ricardo Westin escreveu um artigo para El País sobre a gripe espanhola no Brasil, em 1918. O trecho que gostaríamos de transportar chama-se “Os pobres ao deus-dará”:


A epidemia escancara uma deficiência grave do Brasil: em termos de saúde, os pobres estão ao deus-dará. Não há hospitais públicos. Não é raro que as pessoas, assim que se descubram “espanholadas”, busquem socorro nas delegacias de polícia. Quem, aos trancos e barrancos, presta alguma assistência à população carente são instituições de caridade, como as santas casas e a Cruz Vermelha.

— As famílias ricas são menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiam em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus — conta o historiador Leandro Carvalho, professor do Instituto Federal de Goiás e autor de dois estudos sobre a epidemia de 1918.



Como conjugar então, sujeição e liberdade, já que prevemos diversas crises acessórias e posteriores a pandemia do coronavírus?! Se era preciso algo suficientemente forte para abolir o estado atual das coisas, já temos. Não é questão de ceticismo, pelo contrário, é a propositura de uma utopia eficaz, que age para reforçar nosso senso de coletividade e oferece esperança em um mundo incerto. 


     Continuemos em casa, mixando serenidade e inquietude. Mas, enchendo nossos corações, mentes e mãos de indignação, desejo de transformação, amor e CORAGEM. Porque depois que todo esse perigo biológico passar... ficará a consequência sócio-econômica do caos. E é aí que poderemos agir em prol de uma mudança. Algo totalmente diferente do que vivemos até agora. Talvez possamos iniciar novos projetos, estabelecer outros hábitos e padrões de consumo, amar mais, construir novas leis e uma sociedade onde o sistema não seja mais importante do que as pessoas que nele vivem; onde coisas não importem mais do que pessoas; onde o principal objetivo legislativo e institucional não seja proteger a propriedade privada e a liberdade de mercado ACIMA DOS INTERESSES DA COLETIVIDADE. Podemos nos propor a repensar nossa humanidade e estrutura diante dessa crise, nossas relações, nosso olhar sobre o outro. Estamos todos evoluindo. E precisamos ter a certeza de estarmos fazendo isso juntos.Já que liberdade é coisa que se conquista conjuntamente, não haverá espaço para quem quiser manter o status quo. Nós, em união, não permitiremos.

Carolina Parrode, quarentenista.

domingo, 10 de março de 2019

Não Me Apaixonei Por Você

Sou uma pessoa realista ... não me entrego a paixões lancinantes. Assim sendo, saiba que eu não me apaixonei por você. Não foi paixão, tampouco amor. Em verdade... foi pouco.

Eu só gostei do jeito como a sua barba mal feita roçou no meu pescoço... e não só no meu pescoço, entre as minhas pernas.

Gostei de experimentar a suavidade da sua potência sobrevindo de um jeito tão gostoso que eu jamais havia provado.

Até que gostei de deitar o meu corpo suado sobre o seu, quando me cansava, ofegante;

Gostei um pouco do aconchego de adormecer sobre o seu peito sem nem perceber, depois de tudo;

Gostei da sua mão, que não se cansava de alisar meu corpo. Disso gostei muito.

Você consumia meu tempo e minhas tentativas (frustradas) de assistir um filme inteiro ao seu lado... Impossível.

Foi até razoável rir com você... E o vinho, o avançar das horas.

Também seu cheiro e sua anatomia, talvez tenham caído no meu agrado. E como se não houvesse saída, tentava me divertir com a brincadeira muda de fitar seus olhos bem de pertinho e perceber as nuances... e como mudam de tom conforme a luz.

Gostei de conversar migalhas com você à mesa, no sofá e na cama. A intimidade fez seu milagre e tudo foi ficando cada vez mais fácil, livre e delicioso...

Gostei do jeito simplório e viril com que despia-me, com o olhar. Encarava meu corpo com tanto entusiasmo que dali mesmo eu já me sentia saciada... satisfeita por nossa lascívia.

Gostei do modo como você me esquadrinhava com os olhos, com as mãos, com os lábios, com a língua... e com mais!

Mas o que eu mais gostei em você... fui eu!  Foi a novidade.  Na verdade, me permitir o novo. Permitir você em mim.

Entretanto, nada disso foi suficiente para que eu me apaixonasse por você. Não houve obstáculo imposto ao desejo angustiante de ter-te em meu corpo. Por isso, não permaneci. Saibas que não foste suficiente.

Só o que resta do nosso caso morto é este inventário. Medíocre. Tão comum e desimportante como o meu gostar de ti. Talvez seja importante para você saber que foi uma das mais deliciosas experiências da minha vida. E que na verdade este texto é pretexto, porque o meu gozo mora em te usar para escrever estas obscenidades.








Carolina Parrode, ficcionista

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Vários Amores, Uma Só Vida - Parte II


Toda demanda é uma demanda de amor
Jacques Lacan

Ella entrega seu corpo sobre a cama, cruzando os dedos apoiados no ventre... distrai-se com seus próprios pensamentos naquele palco.

Às 14h ele se aproxima, flagra-a em meio às distrações e a desperta de seus próprios devaneios. Ella, hesitante, arregala os olhos como quem tenta abarcar a realidade presente... distante de suas quimeras! A impressão que tinha é que seus pensamentos estavam gritando.

Foi então que surgiu a indagação: - "Você está apaixonada por outro homem?!" A resposta estava posta... essas coisas acontecem nos recônditos do matrimônio.

Mais de uma década juntos... Juan era seguro da autenticidade de seu relacionamento! Mas o que dizer dos pensamentos de Ella, que vagavam longe naqueles dias... Seus suspiros anônimos que divagavam em meio a desejos que ele jamais poderia alcançar. E apesar de sentir-se infernizado por essa ideia, nada havia que pudesse fazer. Ella tinha mente livre, que oportunizava outros mundos, não importando onde estivesse seu corpo.
Por onde andava os pensamentos de Ella? E o que conseguiu fazer deles?










Ella é uma mulher contemporânea. Poderia ser eu... ou você! Sabemos que essas histórias acontecem inclusive nas melhores ‘instituições’.

Quase dois séculos antes de Ella, em 1830, durante um jantar, o filósofo John Stuart Mill conheceu Harriet Taylor. Apaixonaram-se perdidamente. Entretanto, ela estava casada há quatro anos com um farmacêutico, John Taylor. O relacionamento se manteve na impossibilidade por muitos anos, até 1849. Os apaixonados se casaram dois anos depois em Paris.

Harriet teve grande influência na filosofia de Mill e contribuiu especialmente para seu feminismo liberal. Mill creditou a ela a coautoria de muitas de suas obras. Os dois trabalharam juntos nas ideias centrais do pensamento inovador do filósofo. Infelizmente Harriet morreu em 1858.

Pois então... biografias, ficções e até a vida real/atual/factual estão recheadas de histórias assim. O amor é uma linguagem que deve ser compartilhada pelas pessoas e como toda linguagem, é feita de códigos. O amor é um tema tão extenso que abarca praticamente todos os atos da nossa existência.

Então.. vamos falar de amor (esse - também - bonito, que acontece entre um homem e uma mulher)

Afinal, é possível atração erótica, intelectual e afetiva sem haver a entrega física, passional... carnal? De que falamos quando adentramos no terreno estranho do amor ‘proibido’ ou ‘interditado’? Que sentimento é esse, qual circunstancia é capaz de impedir um homem e uma mulher de se entregarem ao desejo de estar juntos... unidos... em toda a sua potência libidinal? É possível o inconsciente com sua atemporalidade, dinamicidade e regência pelo princípio do prazer, se curvar a esse tipo de (des)mando institucional da civilização? Se sim, a que custo?! Então... essas são perguntas que meus impedimentos e limitações fazem o tempo todo... e faço em silêncio.
Que não exista a ação... já que falamos aqui da maioria de nós, neuróticos adestrados. Mas o desejo... (é) chama! É incrível observar como o desejo movimenta os corpos. É puro movimento porque só desejamos aquilo que não temos, portanto, é a falta que instaura o circuito do desejo. 
Adoro a confissão de Sócrates diante dos comensais no banquete, quando diz “(...) pois confesso não entender de nada mais, senão de amor”. Por certo... tenho para mim que sem amor, a humanidade não poderia existir um só dia!

Embaraçada entre tantas reflexões inúteis, concluo timidamente que diante dos freios sociais que nos impedem de passar ao ato, talvez o que prevaleça seja o amor à verdade, vez ou outra, sobre tudo mais, inclusive sobre o amor ao amor. Se considerarmos a ‘verdade’ como continente da realidade... não sei  (pensamento inconcluso aqui).
Todavia, lembremos que desejos passionais são águas... águas sujeitas a tempestades e tsunamis vez ou outra!


Carolina Parrode, desejante e desejada.


domingo, 5 de agosto de 2018

Res Publica, Res Privata

"O que é natural, não busquemos nos seres depravados, mas naqueles que se comportam de acordo com a natureza"
Aristóteles, Política.



É possível o ser humano alcançar o conhecimento genuíno? Apesar de saber que não, esse furor nunca me abandona. Deixa minha mente inquieta, meu coração angustiado e minha alma sedenta.

Uma das primeiras inquietudes como aspirante a jurista, foi quando das primeiras aulas de Direito Romano que assisti na Universidade, ainda no século XX. 
Depois de um tempo, me apaixonei por Direito Público e aí... questões e mais questões arrumei para minha vida jurídico-epistemológica! A sede de saber transformou-se em 'furor educandi' e, desde então, dou aulas de Direito Constitucional para crianças entre 7 e 10 anos de idade. 
O fato é que eu estava às voltas com Rousseau (pessoa que eu amo e odeio ao mesmo tempo, conto o motivo depois)  e des-cobri que a culpa da desigualdade econômica, social e política tem duas matrizes:
A primeira é a problemática da instituição da propriedade privada. A segunda é a própria civilização, malignamente ambígua.
Olhem só que trecho forte (porque Rousseau é o rei do "faça o que eu digo, não faça o que eu faço"):
"O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer 'isto é meu' e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: 'não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém " (p. 80)

Pois é... minha vida tem temas e trilha sonora. E esses  antagonismos (que para mim são complementares) como "coletivo/individual", "público/privado", "de todos/de ninguém" são temas da minha vida, dentre outros, e meus neurônios se desgastam em torno deles!

Vejamos outro cenário: 
Passeando pelo Rio de Janeiro vi muros/portões pichados "Não fui eu"... desabafo e pichação em letra bonita digna da melhor professora alfabetizadora. Instantaneamente lembrei-me do artigo de João Moreira Salles para a Piauí de abril "Anotações sobre uma pichação -  Inocência, culpa e responsabilidade nas ruas do Rio de Janeiro". Na época li o artigo para meus alunos e conversamos muito sobre responsabilidade coletiva, infortúnio alheio, alteridade e empatia - delícia de aula.




Fato é que o articulista dizia assim no introito: "Não sendo enunciada por ninguém em particular, a frase pertence a qualquer um. A sensação de que "Não fui eu" fala de nós é uma confirmação de que, dado o alheamento geral, o melhor é jogar a toalha e cuidar da própria vida! (...) se cheguei aqui apesar dos outros, o que diz respeito ao mundo não me concerne. Natural, portanto, que eu me exima de toda responsabilidade coletiva. O infortúnio alheio não me pesa. Não fui eu."

Enfim... o que tem a ver um filósofo francês, a epígrafe do Aristóteles, o artigo de João Moreira Salles com a pichação nas ruas da metrópole ?! 
O que tem a ver a pichação com  reflexões sobre res pública e res privata?!
Sei não! Eu estava aqui só divagando sobre duas andanças vividas no mesmo dia: o caos da metrópole e pensamentos iluministas.

Carolina Parrode, pensante.